Tributar não é crime; Sonegar, sim

Devedores tributários contumazes no mercado de combustíveis: o quanto se poderia reduzir da carga tributária se todos pagassem os tributos devidos?

Paulo Henrique Garcia D’Angioli
Rodrigo Tomiello da Silva
José Guilherme Costa

INTRODUÇÃO

Especialmente em um momento de escassez de recursos, pressão inflacionária e crise sanitária, como o vivido entre 2020 e 2022, a exigir diversas prestações positivas pelo Estado, não há inimigo maior para a sociedade do que o devedor tributário contumaz. Embora ainda não haja uma definição legal e em nível nacional do “devedor tributário contumaz” (o PLS 284/2017, que com suas devidas emendas define os requisitos para configuração do devedor contumaz, segue tramitando no Senado[1]), existem elementos que auxiliam tanto em sua caracterização quanto na distinção quando do cotejo com devedores episódicos.

O que os diferencia não é o tamanho da dívida (existem teses legítimas, defendidas por contribuintes episódicos, que envolvem altos valores, e suas defesas com as devidas garantias refletem exercício do devido processo legal) ou apenas o fato de estar há mais ou menos tempo com certidão de regularidade fiscal emitida em seu nome (pode haver dificuldades severas nos cadastros junto ao fisco que dificultem sobremaneira a emissão de certidões mesmo quando estão presentes as condições jurídicas).

O devedor episódico é aquele que promove interpretação normativa (que, mesmo controversa, passa pelo filtro de razoabilidade, considerando a complexidade do nosso sistema tributário), ou formula e aplica teses de planejamento fiscal lastreadas em entendimentos jurisprudenciais ou doutrinários, ou eventualmente comete equívocos em sua apuração e recebe, por isso, autuações. Diante dessas autuações, o episódico se defende administrativa e judicialmente, emprega as devidas garantias e discute a juridicidade de suas posturas.

O contumaz, porém, é aquele que atua com intenção específica na conduta e no resultado, e se organiza empresarialmente para, de modo reiterado e consistente, não recolher tributo. Quando é autuado, apresenta defesas procrastinatórias calcadas apenas em elementos formais e não tem por costume ofertar garantias idôneas em seara judicial.

DEVEDORES CONTUMAZES: PROBLEMAS

Quando inserido no meio da cadeia econômica, existe o contumaz que tenta se fazer de “Robin Hood” e repassar o desconto do não recolhimento do tributo para os adquirentes, vendendo seus produtos a preços mais baixos que toda a concorrência. Com isso, esse tipo de contumaz causa, além do rombo nos cofres públicos, relevante desequilíbrio concorrencial e obliteração dos demais players, especialmente pequenas empresas que geram empregos e prosperidade local; o que no começo parece bom para o consumidor, termina péssimo para todos.

A literatura do direito econômico há muito se debruça sobre o tema das práticas predatórias naquilo que chamamos dumping. Numa simplificação grosseira, o agente econômico pratica de modo consistente e injustificado preços abaixo do custo natural e, com isso, tenta inviabilizar os concorrentes que perdem mercado em razão dos preços.

Uma vez eliminados os concorrentes, o agente que praticara o dumping, agora sem concorrentes, sobe seus preços e aumenta suas margens – e o consumidor que se beneficiou de uma baixa episódica dos preços agora está entregue àquele fornecedor, que passa a atuar sozinho no mercado. No conhecido julgamento do RHC n° 163.334/SC[2] pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o Relator Ministro Barroso citou, em seu voto, estudo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) sobre o tema[3].

A utilização da inadimplência fiscal como instrumental para a prática de preços abaixo do custo, contudo, resiste em ser analisada pelos órgãos antitruste nacionais. A razão é até compreensível: a Constituição prevê a neutralidade fiscal, logo, desnecessário seria tratar o tema sob ótica do direito concorrencial, afinal a Fazenda resolve(ria) essa questão na seara adequada.

No entanto, isso não se verifica. São inúmeros os grandes devedores que ocupam o Poder Judiciário em execuções fiscais sem destino e processos executivos que não encontram bens e os sócios não possuem nenhum patrimônio conhecido. As soluções apresentadas, seja pela complexidade, seja pela falta de objetividade, dificilmente tendem a resolver o problema: quando muito, postergam ou dificultam a vida dos devedores contumazes, mas não a ponto de encerrar suas atividades.

No mercado de combustíveis, em que mais de 30% (trinta por cento) do preço são tributos e as margens são, em regra, extremamente tímidas[4], o potencial para realizar estragos na concorrência é enorme a partir da inadimplência. Uma tendência seria buscar a responsabilidade criminal desses agentes; a ocultação e a lavagem de capitais é crime que possivelmente acompanha a prática dos crimes tributários. Afinal, se não há ocultação e lavagem de capitais, ao menos algum patrimônio seria encontrado nas execuções fiscais, diferentemente do que se verifica no cotidiano forense.

Este é um ponto que o cidadão médio precisa entender, por mais doloroso que soe: tributo em si não é roubo; é a principal fonte de receita do Estado para execução de suas atividades constitucionalmente previstas, como a prestação dos serviços, a segurança, as medidas de seguridade social (saúde, assistência e previdência) e a educação públicas. O que efetivamente prejudica é alguns pagarem tributos corretamente enquanto outros definem estratégias empresariais ilícitas para atuação no mesmo mercado sem os pagar.

Sim, enquanto cidadão muitas vezes causa desconforto ver auxílios A ou B a determinadas elites, o custeio de bens e viagens de luxo pelo Estado e outras malversações de verbas públicas. Mas o problema central (amadureçamos, ainda que tardiamente, enquanto povo!) está na fixação da despesa; o que precisamos é de um melhor controle do orçamento. Não pagar bilhões em tributo, como fazem os contumazes, não vai evitar a compra do caviar para alguma elite, mas vai impedir a compra das vacinas.

Há ainda, estes imensamente perigosos, os contumazes que constituem organizações criminosas, para os quais a sonegação tributária é apenas um dos ilícitos cometidos; soma-se à dívida fiscal um sem número de crimes contra consumidores, que vão desde a fraude na qualidade e na quantidade de produtos até violações a outros bens jurídicos tutelados pelo direito penal.

Dados disponibilizados pela Fenafisco[5] e 2022 apontam, a partir de levantamento em 17 unidades da Federação, para um rol de principais devedores tributários, mas focado apenas no tamanho das dívidas (que, como já informamos, não é um critério seguro para, sozinho, permitir a definição de contumácia[6]). Estudos da FGV[7] em 2021 demonstram haver um rombo de R$ 70 bilhões ao ano de sonegação apenas junto a alguns estados da Federação, grande parte no segmento de combustíveis[8].

Houve, em 2021 e no começo de 2022, um problema inequívoco de alta de preços de combustíveis (as origens são diversas, mas entre elas está a carga tributária sobre os combustíveis – alta, exatamente para compensar as perdas em razão da sonegação por parte dos devedores contumazes) e, em consequência, da pressão inflacionária[9], que gera diversos malefícios à coletividade. Esse problema, por ora, vem sendo tratado artificialmente pelas Leis Complementares nº 192[10], 194[11] e Emenda Constitucional nº 123[12], todas de 2022: desoneração de PIS, COFINS, CIDE e limitação de base de cálculo de ICMS até 31/12/2022.

É necessário então fomentar melhorias estruturais nesse ordenamento e aproveitar as idiossincrasias de um mercado de commodities – tanto no viés normativo quanto na atuação fiscal e cobrança da dívida ativa / criminalização da conduta dos responsáveis pelos devedores contumazes –, já que as atividades fiscalizatória, de cobrança e de persecução criminal do Estado, como toda e qualquer prestação, têm um custo (e, portanto, um limite natural e um ponto ótimo de eficiência).

Não é viável a fiscalização eficiente de todos os participantes de um segmento como o de combustíveis; a eleição de prioridades é fundamental à luz do princípio constitucional da eficiência (art. 37, caput, da Constituição). Raciocinemos a partir também das seguintes premissas:

– só pode sonegar aquele que tem responsabilidade pelo recolhimento de tributos;

– os principais tributos sobre combustíveis são ICMS (estadual, com substituição tributária e cargas diferentes em cada estado), PIS e COFINS (federais, com tributação concentrada);

– dois dos maiores nichos de sonegação são a simulação de operações internas e interestaduais (devido à diferença de carga de ICMS entre estados) e destinação ilícita de produtos importados (PIS e COFINS).

SUGESTÕES DE ENDEREÇAMENTO

As soluções que enxergamos passam pela aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 284/2017 (PLS 284/17) com sua redação ajustada, o que significaria o estabelecimento de critérios mais objetivos e unificados para caracterização do devedor contumaz.

Além disso, mister a imposição de regimes especiais de tributação para esse tipo de devedor, com o fim de equilibrar a concorrência e a efetivação da incidência monofásica para a cobrança desses tributos, com alíquota uniforme por volume / peso do combustível, assim como pela marcação química de produtos importados (sejam aqueles que poderiam ser convertidos em combustível, sejam aqueles com benefício fiscal para circulação em apenas determinada área), consoante a tributação quando das entradas no país – com isso, se evitariam conversão indevida e comercialização como se fossem combustíveis ou venda para região diversa daquela informada.

Se sonegar tem como pressuposto ser sujeito passivo, a primeira solução deve passar pela redução – a máxima possível – no rol de contribuintes e na simplificação das regras aplicáveis nas obrigações principal e acessórias. Para tributos naturalmente plurifásicos e não cumulativos, casos do ICMS e de PIS/COFINS, a solução no segmento de combustíveis passa pela fixação de um regime monofásico alocado no elo produtor / importador, com regras suficientemente claras sobre a formação de base de cálculo e os creditamentos viáveis, exatamente como permitido na Constituição e, enfim, materializado na LC 192, ainda que inicialmente frustrado[13] pelo (hoje já revogado, mas inicialmente objeto da ADI 7164/DF[14]) Convênio CONFAZ nº 16/2022[15].

No caso de PIS/COFINS, uma tentativa de solução é aquela materializada no Projeto de Lei nº 3.887/2020[16], que cria uma Contribuição única sobre receita bruta, com superação de problemas históricos sobre formação da base de cálculo e fixação de monofasia, com registro explícito de não geração de crédito para adquirentes meros revendedores.

O caso do ICMS é bem mais complexo, pela multiplicidade de sujeitos ativos e de cargas tributárias atualmente vigentes. Essa dificuldade gera imensas tensões dos governadores com o Planalto, que ajuizou a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 68[17], apresentou o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 16/2021[18] e fomentou o trânsito célere do PLP 11/2020[19], que gerou a LC 192, que aponta pela viabilidade de instituição de um ICMS monofásico (incidente em apenas uma etapa – produção ou importação) e com fixação de alíquotas específicas e uniformes para cada combustível.

As UFs reiteradamente se colocam contra a imposição de um ICMS uniforme, explicando que as atuais diferenças de cargas entre elas são grandes e que uniformizar redundaria, para algumas delas, em perda de arrecadação massiva[20] em um momento sensível de enfrentamento às sucessivas crises a partir da Covid-19. Como a discussão se deu com o pano de fundo da alta dos combustíveis no mercado nacional, houve ainda alegação de que o efeito da uniformização do ICMS não redundaria diretamente em redução no preço dos combustíveis[21]. Mas essas perdas de um cenário de uniformização, considerando a instituição da monofasia linear e ad rem, não seriam compensadas pela cobertura do atual rombo já existente, evidenciadas em estudos da FGV?

Argumentos sobre fragilização de autonomia do ente com a regulamentação nacional de um imposto como o ICMS devem ser contrapostos com os dados econômicos da sonegação e com a reverberação de um pressuposto dos Estados Constitucionais: autonomia é poder para fazer muito, mas não de fazer tudo. Certamente o acréscimo de competências materiais (imposições constitucionais de ação dos entes federados) sem a contrapartida de recursos fragiliza a posição dos estados e municípios, contudo, a recomposição do equilíbrio federativo não passa pela manutenção de um modelo disfuncional e ineficiente.

CONCLUSÃO

Como observamos, se ainda faltam elementos normativos em âmbito nacional para apontar o devedor contumaz, as consequências danosas da ausência de combate a essa figura são conhecidas, seja sob o aspecto fiscal, seja sob a ótica concorrencial.

Acima, além de apontar os problemas existentes no atual modelo, buscamos indicar algumas alternativas para solucioná-los. Nenhuma mágica é necessária, como se viu, mas é preciso coragem e vontade política para aprovar as medidas legislativas (monofasia, uniformização de cargas, conceito objetivo e nacional de devedor contumaz e oferta de instrumentos para seu combate) e adotar as ações (fiscalização e marcação química de combustíveis importados, responsabilização de sócios dos devedores contumazes, nos âmbitos tributário, civil e penal) necessárias para o correto enfrentamento do tema.

A tarefa não é fácil, sabe-se, mas é imprescindível para buscarmos uma tributação mais justa e eficiente, eliminando, assim, o rombo fiscal causado pela sonegação e o dano concorrencial daí decorrente. Tributar não é crime; sonegar é. E reflete uma total indiferença do devedor contumaz perante o Estado e toda a sociedade.


[1] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/130467

[2] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5562955

[3] “Diz o exemplo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial: suponham um [contribuinte com] custo da mercadoria de R$ 4; despesas com salários e aluguéis de R$ 1; imposto, R$ 3; e lucro de R$ 2. Portanto, esse produto deveria ser vendido por R$ 10 para que o comerciante obtivesse o seu lucro e recolhesse adequadamente o seu imposto. O [devedor] que não paga [o imposto de] R$ 3 pode ou vender por R$ 7, e fazer uma concorrência predatória com o que está cumprindo as suas obrigações, ou vender por R$ 10 e lucrar mais do que o dobro do que o seu concorrente. Qualquer uma das duas práticas é devastadora para uma economia em que os atores econômicos devem disputar os consumidores em igualdade de condições.”

[4] https://petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/composicao-de-precos-de-venda-ao-consumidor/

[5] https://www.jb.com.br/economia/2021/10/1033631-empresas-devem-rs-8962-bilhoes-aos-cofres-publicos-dos-estados-conheca-os-baroes-da-divida.html

http://www.baroesdadivida.org.br/

[6] https://www.jornalcorreiodamanha.com.br/colunistas/claudio-magnavita/10326-coluna-magnavita-refit-um-esquema-super-refinado-parte-xi-lista-de-passageiros-do-jatinho-da-refit-pode-revelar-lacos-politicos

[7] https://diganaoasonegacao.com.br/

https://institutocombustivellegal.org.br/wp-content/uploads/2021/07/Relatorio_FGV_ICL.pdf
https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2021/04/14/sonegadores-contumazes-de-combustiveis-geram-divida-de-r70-bi-aos-estados-diz-icl.htm

[8] https://institutocombustivellegal.org.br/estudo-da-fgv-revela-sonegacao-de-r14-bilhoes-ao-ano-no-setor-de-combustiveis-pesquisador-destaca-metodo-utilizado-e-alerta-para-combate-ao-devedor-contumaz/

[9] https://oglobo.globo.com/economia/com-nova-alta-nos-combustiveis-litro-de-gasolina-chega-custar-ate-788-diz-anp-25257720

[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp192.htm

[11] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp194.htm

[12] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp123.htm

[13] http://gdt-rio.com.br/monofasia-do-icms-dos-combustiveis-lei-complementar-192-22-e-convenio-confaz-16-2022-o-bode-na- sala-nos-fez-pular-pela-janela/

[14] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6404538

[15] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2022-1/CV016_22

[16] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258196

[17] https://tributario.com.br/jgfac19811/icms-sobre-combustiveis-e-ado-68-do-poder-ao-dever-de-legislar/

[18] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/plp-16-2021-monofasia-ad-rem-como-remedio-eficiente-para-icms-sobre- combustiveis-24082021

[19] https://www.jota.info/legislativo/icms-sobre-combustiveis-plp-11-13102021

[20] https://www.moneytimes.com.br/estados-rejeitam-mudar-icms-de-combustiveis-e-deputados-atacam-precos-da-petrobras/

[21] https://monitormercantil.com.br/reduzir-icms-nao-tera-grande-impacto-sobre-preco-da-gasolina/

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