O Barbeiro de Sevilha e o Supremo Tribunal Federal

José Guilherme Costa

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

Rodrigo Tomiello da Silva

Uma recomendação inicial: ler o texto ouvindo a música[1].
A clássica obra de Rossini inicia com a alvorada do barbeiro. Abram alas para o faz-tudo da cidade, clama o entusiasmado barbeiro.
 
Largo al factotum della citta.
Largo! La la la la la la la la la La!

O profissional deixa clara a correria de seu dia, que mal começou, e pede pressa. Alvissareira fortuna desse barbeiro que agradece a vida que leva: a de um barbeiro de qualidade.
 
Presto a bottega che l’alba e gia.
Presto! La la la la la la la la la La!
Ah, che bel vivere, che bel piacere (che bel piacere)
per un barbiere di qualita! (di qualita!)

Aparentemente emocionado com as próprias dádivas, o barbeiro segue seus louvores à vida que leva e à própria importância:
 
Ah, bravo Figaro!
Bravo, bravissimo!
Bravo! La la la la la la la la la La!
Fortunatissimo per verita!
Bravo!
La la la la la la la la la La!
Fortunatissimo per verita!
Fortunatissimo per verita!
La la la la, la la la la la la, la la la la la la, la la la la la!
Pronto a far tutto, la notte e il giorno
sempre d’intorno in giro sta.
Miglior cuccagna per un barbiere,
vita piu nobile, no, non si da.
La la la la la, la la la la la, la la la la la, la la la la laa!

A quem resistiu ao nosso texto até aqui, se perguntando em que momento o STF aparece como o Fígaro na obra de Rossini, ou àqueles que já entenderam, deixaremos mais claro adiante; é preciso avançar na vida de Fígaro para chegarmos com maior clareza ao STF.
O dia de Fígaro avança e o cantante começa a dar sinais de estafa e da demasia de atribuições que atraiu para si, vezes por clamor dos citadinos e outras por aceitar tarefas que não lhe seriam originárias, mas foram agregadas à sua rotina por força das contingências.
 
Tutti mi chiedono, tutti mi vogliono,
donne, ragazzi, vecchi, fanciulle:
Qua la parruca… Presto la barba…
Qua la sanguigna… Presto il biglietto…
Tutto mi chiedono, tutti mi vogliono,
tutti mi chiedono, tutti mi vogliono,
Qua la parruca, presto la barba, presto il biglietto, ehi!

Esgotando suas forças, Fígaro é chamado por todos da cidade, que batem à sua porta clamando seu nome.
 
Figaro… Figaro… Figaro… Figaro…Figaro…
Figaro… Figaro… Figaro… Figaro…Figaro!!!
Ahime, (ahime) che furia!
Ahime, che folla!
Uno alla volta,
per carita! (per carita! per carita!)
Uno alla volta, uno alla volta,
uno alla volta, per carita!

“Um por vez, por favor!”, suplica Fígaro em tom de angústia e estafa. O desespero de Fígaro por ser o faz-tudo da cidade, motivo do qual até então se orgulhara, é o que nos motiva a apontar algumas coincidências com o Supremo Tribunal Federal.
Sabe-se que, à época em que escrita a peça de Rossini, os barbeiros efetivamente acumulavam funções. Além de cortar cabelos e barbas, faziam as vezes de dentistas e cirurgiões. No entanto, os pedidos a Fígaro vão se ampliando, se tornando (auto)exigências, e o barbeiro passa a ser o faz tudo da cidade, condição que lhe orgulha, mas lhe exaure.

Como sói ocorrer em estados constitucionais de direito, o Supremo foi colocado em posição de destaque na democracia brasileira. As tensões naturais promovidas pelo constitucionalismo do segundo pós-guerra retratadas na Constituição de 1988 conferem essa condição à Corte Constitucional.

Ocorre que o STF, como Fígaro, passou a aceitar as variadas demandas que foram chegando às suas portas. A política passou a ser objeto de judicialização e a função contramajoritária, própria das cortes desse jaez, por vezes foi exercida para além das possibilidades interpretativas conferidas pelos textos.

Em outras palavras, o STF se aproximou da função de superego da sociedade[2] (Ingenborg Maus) e passou a “corrigir” a política e os textos legislativos de forma mais evidente[3]. Reconhecemos a existência das decisões manipulativas e aditivas, mas a mera admissão de temas pela corte por vezes parece superar a interpretação de controle de constitucionalidade adequada. Transparece puramente a opinião pessoal dos julgadores ou alguma justificativa fora do direito, na concepção de discricionariedade judicial tão bem referenciada por Georges Abboud.

Além disso, a Corte Suprema passou a analisar temas que outrora eram assunto para outros tribunais. Fábio Fraga e Diogo Ferraz expuseram a questão no texto “STJ, STF e o dilema da hierarquia – Quem disse que o STJ é inferior ao STF?”, oportunidade em que ilustram a atração de questões ao Supremo, superando a competência constitucional do STJ.
 
Ah, bravo Figaro! Bravo, bravissimo;
Ah, bravo Figaro! Bravo, bravissimo;
a te fortuna (a te fortuna, a te fortuna) non manchera.

Por melhor que possa parecer a postura do STF, fato é que temos uma Constituição que prevê a divisão de funções institucionais também como garantia; aceder à tentação de julgar tudo que lhe é trazido, incluindo matérias afetas a outros órgãos jurisdicionais e aquelas que escapam ao crivo do Poder Judiciário, pode soar bem ao faz-tudo e cantante Barbeiro, mas não a uma Corte Constitucional.
 
Sono il factotum della citta,
Sono il factotum della citta,
della citta, della citta,
Della citta!!!
La la la la la la la la la!

 

[1] https://www.youtube.com/watch?v=RTk79LAd0eM

[2] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”.Novos estudos CEBRAP. São Paulo,n.58.pp.183-202.nov.2000.

[3] Clarissa Tassinari elabora com primor o tema em tese de doutorado. Tassinari, Clarissa; A supremacia judicial consentida: uma leitura da atuação do Supremo Tribunal Federal a partir da relação direito-política. Disponível em http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/6403.

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