ADI 5635, FEEF e FOT-RJ: novo paradoxo?  

José Guilherme Costa

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

Rodrigo Tomiello da Silva

 

I – Breve introdução

 

Em outubro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou parcialmente procedente o pedido formulado na Ação Direta/Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5635/DF (Relator Ministro Luís Roberto Barroso), por meio da qual se pedia o reconhecimento da inconstitucionalidade de fundos compostos a partir de valores de ICMS.

Ao assim decidir, o STF definiu que os fundos devem ser tratados rigorosamente como o próprio ICMS: não têm destinação específica, as receitas serão compartilhadas com os municípios e deverão observar a não cumulatividade e anterioridade.

Ora, a comparação dos fundos ao ICMS no viés da não cumulatividade já deveria revelar a viabilidade de seu pagamento com quaisquer eventuais créditos acumulados do referido tributo. Mas isso deveria ter redundado na inadequação das normas estaduais que exigem os depósitos mensais em dinheiro. Eis aqui o primeiro indício de paradoxo.

Mas há ainda outra dificuldade decorrente da forma de pagamento desses fundos; por normativos estaduais, este se dá mensalmente em depósitos específicos e calculados sobre os valores dos benefícios experimentados durante o mesmo período de apuração, tornando absolutamente impossível o destaque operação a operação, o que viola características fundamentais do ICMS, como o fato de ser um imposto indireto.

A perplexidade exsurge: estamos tratando de ICMS, ou melhor: de um fundo criado para resgatar as finanças estaduais através do ICMS, usando os benefícios outrora concedidos como ferramenta para esse fim. Contudo, a regra para que o sujeito passivo entregue os valores ao Estado é diferente; diferente é a base de cálculo e diferente a forma de apuração. Diante de tantas diferenças, ainda é possível dizer que são a mesma coisa? Qual o critério para distinguir algo? Distinguir, classificar são importantes para o direito tributário?[1]

Tomemos por exemplo: sem a possibilidade de repasse imediato e destacado desse “valor do fundo” aos adquirentes (contribuintes de fato), venda a venda, a carga tributária relativa ao fundo acaba suportada exclusivamente pelo alienante (que deveria ser apenas contribuinte de direito). Como compatibilizar esse cenário com a não cumulatividade? Aqui está o segundo elemento constitutivo do paradoxo.

Esses argumentos deveriam bastar à inconstitucionalidade dos fundos, mas, como o STF assim não entendeu, precisamos buscar entender como adaptar o decidido à realidade prática dos contribuintes do RJ.

É possível ao contribuinte vencer em “Teste Kobayashi Maru”[2] (um cenário de derrota inexorável na obra ficcional Star Trek), no qual a decisão do STF parece ter fulminado todos os seus principais argumentos? É disso que tratamos nas linhas a seguir, a partir do resguardo da não cumulatividade.

 

 

II – Um apanhado geral sobre o ICMS

 

O imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (ICMS), é um tributo estadual e distrital, com matriz primária no art. 155, II c/c §§2º a 5º da Constituição desta República (CRFB/88), arcabouço de normas gerais por meio especialmente (mas não exclusivamente) do Código Tributário Nacional (CTN – Lei nº 5.172/66) e da Lei Complementar nº 87/96 (LC 87 – Lei Kandir) e instituição concreta em leis estaduais e distritais[3].

Trata-se também de imposto indireto[4], portanto objeto de obrigatório destaque em nota fiscal emitida pelo contribuinte de direito (alienante, que pratica o fato gerador e tem relação direta com o Fisco) e repasse do ônus financeiro ao contribuinte de fato (aquele que, considerando apenas a aquisição, não pratica o fato gerador e não tem relação direta com o Fisco).

O ICMS é um imposto também em regra[5] plurifásico (incide em cada etapa de circulação jurídica das mercadorias / prestação dos serviços tributáveis)[6] e com técnica de apuração não cumulativa (tomada de crédito por entradas tributadas e abatimento de débitos por saídas tributadas), evitando tributação “em cascata”[7] e fazendo com que, de certa forma, só haja nova tributação sobre efetiva nova riqueza.

O ICMS, embora possa ser seletivo (art. 155, §2º, III, CRFB) – como mostrou o STF ao decidir o Tema de Repercussão Geral (TRG) 745[8] –, é tributo de caráter eminentemente fiscal (arrecadatório), e estritamente sujeito às regras constitucionais da legalidade e anterioridade tributárias (art. 150, I e III, da CRFB/88).

Ademais, ao ICMS se aplica, entre outras, a vedação a que alude o art. 167, IV c/c §4º, da CRFB/88[9], que materializa a regra da não afetação das receitas de impostos[10].

 

 

III – Benefícios Fiscais de ICMS

 

Como “benefício fiscal”, entende-se qualquer redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus tributário, seja por meio de redução do valor cobrado ou concessão de créditos ou incentivos fiscais; não se confunde com benefício apenas financeiro, por exemplo.

Estados e DF podem, naturalmente, conceder benefícios fiscais, desde que obedecidas as premissas normativas aplicáveis. O art. 150, §6º da CRFB/88 determina que qualquer subsídio, isenção, benefício ou incentivo fiscal deve ser concedido por intermédio de lei específica do ente político competente. Trata-se de mera expressão do princípio da Legalidade, extraído do art. 150, I da CRFB e do art. 97 do CTN[11].

Como se trata – a concessão de benefícios fiscais – de renúncia de receitas públicas, a Lei Complementar nº 101/2000 – “Lei de Responsabilidade Fiscal” (LC 101 / LRF) prevê ainda, em seu artigo 14, os requisitos de gestão que devem anteceder e justificar referida benesse do ente federativo.

Além desses requisitos gerais, para o ICMS coube à Lei Complementar nº 24/75 (LC 24) o papel de regulamentar a forma de concessão do benefício, consoante imposição constitucional do art. 155, §2º, XII, g – sendo certo que Convênio CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária[12]) é espécie normativa tratada no art. 2º da LC 24.

Não é, porém, qualquer redução fiscal que exige a celebração prévia de convênio no CONFAZ; um estado pode, unilateralmente e por lei, reduzir a carga de seu ICMS até o limite da alíquota interestadual[13].

Mas os benefícios fiscais de ICMS, porque muito diversificados, podem se caracterizar de outras formas menos evidentes. O art. 1º da Lei Complementar nº 24/75[14] auxilia no caminho para se tentar definir seu espectro, mas não esgota o tema.

Discernir os contornos desse conceito não é tarefa trivial. O item 2 da tese recentemente definida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no enfrentamento do Tema de Recurso Repetitivo nº 1182[15] mostra, por exemplo, o quanto há de controvérsia sobre a questão relativa ao diferimento se qualificar ou não como benefício:

 

“2. Para a exclusão dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS, – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.” (O grifo é nosso)

 

Não se nega, até por empirismo, que existem situações jurídicas que são originalmente etiquetadas como diferimentos, todavia podem se converter em isenções tributárias, e decerto essas devem seguir a metodologia apropriada aos benefícios.

Ocorre que, por excelência, o diferimento “puro” reflete apenas uma transferência de momento no qual recolher o tributo, ou mesmo uma substituição tributária para trás, isto é, aquela na qual entes mais à frente da cadeia de circulação procederão ao recolhimento do ICMS-ST. Esta compreensão é validada por jurisprudência histórica do STF:

 

“Diferimento do ICMS em operações internas com produtos agropecuários. A contribuição criada pela lei estadual não possui natureza tributária, pois está despida do elemento essencial da compulsoriedade. Assim, não se submete aos limites constitucionais ao poder de tributar. O diferimento, pelo qual se transfere o momento do recolhimento do tributo cujo fato gerador já ocorreu, não pode ser confundido com a isenção ou com a imunidade e, dessa forma, pode ser disciplinado por lei estadual sem a prévia celebração de convênio. (ADI 2.056, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 30-5-2007, Plenário, DJ de 17-8-2007.) Vide: ADI 3.702, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 1º-6-2011, Plenário, DJE de 30-8-2011.” (grifos nossos)

 

Devem ser tratados com cuidado, ainda, os diferimentos de ICMS, concedidos por uma unidade federativa de origem, que se alongam e se tornam não recolhimentos para essa UF de origem, em operações que destinem determinado produto à exportação (art. 155, §2º, X, a, CRFB/88) ou destinem a outra UF petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, ou energia elétrica (art. 155, §2º, X, b, CRFB/88). Nesses casos, defendemos, não há nenhum benefício fiscal, mas mera aplicação de normas de imunidade[16].

 

 

IV – Os Fundos de Equilíbrio Fiscal

 

Em razão de gravíssima crise fiscal que assolou as unidades federativas em 2016, os Estados e DF se uniram e aprovaram o Convênio CONFAZ nº 42/2016[17], que autorizou “os estados e o Distrito Federal a criar condição para a fruição de incentivos e benefícios no âmbito do ICMS ou reduzir o seu montante”.

Segundo a cláusula primeira do Convênio em comento, duas eram as metodologias possíveis para se gerar a despesa extra para a unidade federativa: a criação de um fundo ou a redução do benefício.

 

Cláusula primeira Ficam os estados e o Distrito Federal autorizados a, relativamente aos incentivos e benefícios fiscais, financeiro-fiscais ou financeiros, inclusive os decorrentes de regimes especiais de apuração, que resultem em redução do valor ICMS a ser pago, inclusive os que ainda vierem a ser concedidos:

I – condicionar a sua fruição a que as empresas beneficiárias depositem em fundo de que trata a cláusula segunda o montante equivalente a, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício; ou

II – reduzir o seu montante em, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício.”

 

Inicialmente, ao óbvio: se estamos a falar de percentuais sobre grandezas dos benefícios, necessariamente estamos a tratar de um instituto aplicável sobre uma base de cálculo constituída por efetiva redução de carga de ICMS.

Ultrapassado esse ponto, e aventurando-nos contra o afirmado recentemente pelo STF, parece-nos que apenas uma das opções no Convênio seria legítima – aquela prevista no inciso II e, mesmo assim, apenas quando respeitadas algumas premissas.

A primeira delas é que não se poderia cogitar de modificar as condições já implementadas no caso de benefícios concedidos na forma do art. 178 do CTN. A segunda é que, se está havendo redução de benefício, é mister observar as regras constitucionais de anterioridade, consoante decidido pelo STF, entre outros, na ADI nº 5.277/DF (Relator Ministro Dias Toffoli)[18]. A terceira, consoante já apontamos linhas acima, é de inviabilidade de incidir sobre mecanismos viabilizadores de imunidades.

Não temos dúvidas de que a minoração de uma redução de carga fiscal de ICMS significa tão somente um aumento do próprio ICMS, enquanto a criação de um fundo específico para depósito de montante de percentual equivalente ao benefício, nos termos do inciso I, configura uma situação verdadeiramente sui generis[19].

Ainda assim, o Estado do Rio de Janeiro optou pelo caminho a que aludia o inciso II e, por meio da Lei Estadual nº 7.428/2016, regulamentada pelo Decreto nº 45.810/2016, instituiu o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (FEEF-RJ).

Após algumas críticas, que serão pormenorizadas adiante, o Estado do RJ entendeu por revogar referido bloco normativo e instituir um novo fundo: o Fundo Orçamentário Temporário (FOT-RJ), por meio da Lei nº 8.645/2019, regulamentada pelo Decreto nº 47.057/2020, que teria a mesma natureza de seu antecessor, com diferenças mais relevantes na formação de base de cálculo, senão vejamos os consideranda do Decreto Estadual em apreço:

 

“- que o Fundo Orçamentário Temporário – FOT, instituído pela Lei nº 8.645 , de 9 de dezembro de 2019, tem a mesma natureza e finalidade do Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal – FEEF, instituído por meio da Lei nº 7.428 , de 25 de agosto de 2016, bem como fundamento normativo idêntico, qual seja o Convênio ICMS 42, de 03 de maio de 2016, aplicando-se ao depósito no FOT os mesmos critérios e metodologia de cálculo aplicáveis ao depósito no FEEF;

– que, por outro lado, há algumas diferenças entre os dois fundos, em especial quanto aos benefícios fiscais excluídos da obrigação de depósito no FEEF e abrangidos pela obrigação de depósito no FOT;

– o disposto nos arts. 4º , Parágrafo Único, e 9º da Lei nº 7.428 , de 25 de agosto de 2016;

– que a Lei nº 7.428/2016 está revogada desde 11 de março de 2020, data em que entrou em vigor a Lei nº 8.645/2019;

– que a obrigação de realizar o depósito no FEEF teve sua observância aplicável até o mês de fevereiro de 2020, com vencimento fixado em 20 de março;

– que, tendo em vista que o ICMS é apurado com base em periodicidade mensal, o cálculo do valor a ser depositado no FEEF e no FOT deve considerar um período integral de apuração, ficando inviabilizado o cálculo quanto ao mês de março de 2020;”

 

Até a presente data (novembro de 2023), levando em conta o caráter temporário do fundo (na forma do art. 10, I, da Lei nº 8.645/19, esta “produzirá efeitos enquanto estiver vigente o Regime de Recuperação Fiscal – RRF”), o Estado do RJ, embora divulgue a melhoria substancial da gestão do seu caixa[20], segue no RRF e exigindo o depósito ao FOT-RJ.

 

 

V – As ADIs 5635 e 7162

 

Considerando os alegados vícios no FEEF-RJ, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizou em 23/12/2016 a ADI 5635/DF[21] (Relator Ministro Luís Roberto Barroso), suscitando em sua inicial[22] as imprecisões formais, materiais e temporais observadas nos atos normativos instituidores do fundo em questão:

 

  1. a) instituição de nova espécie tributária – invasão da competência da União para, por lei complementar, exercer competência tributária residual;
  2. b) instituição de empréstimo compulsório estadual – invasão da competência da União para fazê-lo em âmbito federal por lei complementar;
  3. c) desrespeito à regra da anterioridade;
  4. d) violação à regra da não afetação de receita de impostos a fundos;
  5. e) violação aos direitos adquiridos quando o fundo é exigido sobre benefícios fiscais onerosos, sujeitos ao implemento de condições;
  6. f) ausência de proporcionalidade e razoabilidade na esfera patrimonial dos contribuintes.

 

Aos argumentos acima, somaram-se ainda outros apresentados por aspirantes a amigos da Corte, tais como a insuficiência de tratamento do tema pelos atos normativos estaduais, que gerava legítimas dúvidas nos contribuintes; a inobservância do fundo quanto à não cumulatividade do ICMS; e o aparente desrespeito à isonomia no trato não objetivo quanto à exigibilidade ou não de depósito ao fundo relativamente a benefícios e incentivos fiscais.

Ouvidos, o Estado do RJ e a Advocacia Geral da União (AGU)[23] defenderam a constitucionalidade dos atos normativos impugnados.

Com a sucessão do FEEF-RJ pelo FOT-RJ, em outubro de 2021 a CNI entendeu por bem promover o aditamento de sua petição inicial, situação que contou, ato contínuo, com a concordância da AGU, atacando agora também dispositivos da Lei Estadual nº 8.645/2019 e do Decreto Estadual nº 47.057/2020. A PGE-RJ apresentou defesa, sustentou as diferenças entre os fundos e requereu a perda superveniente de objeto da ADI.

Sobreveio, em dezembro de 2021, parecer da Procuradoria Geral da República (PGR) pelo conhecimento da ADI e acolhimento da pretensão, com modulação temporal consoante trecho da ementa a seguir:

 

Parecer pelo conhecimento da ação direta, pela suspensão da Representação de Inconstitucionalidade 0083082-60.2019.8.19.0000 em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e, no mérito, pela procedência do pedido, para ser declarada a inconstitucionalidade da Cláusula Segunda do Convênio CONFAZ 42/2016, com modulação de efeitos, e do complexo normativo fluminense que trata do FEEF e do FOT.

 

Por prudência e a fim de combater com maior especialidade os supostos vícios do FOT-RJ, em maio de 2022 a Associação Brasileira de Empresas de Exploração e Produção de Petróleo e Gás (ABEP) ajuizou[24] a ADI 7162/RJ[25] (Relator Ministro André Mendonça), contestando a Lei Estadual nº 8.465/19 e o Decreto Estadual nº 47.057/20, qualificando-os como um bloco normativo que materializou apenas “uma tentativa de contornar os vícios que vinham sendo reconhecidos pelo Poder Judiciário[26]. A inicial aponta desrespeito aos seguintes dispositivos da CRFB/88:

 

“(i) Art. 150, inciso I, da CF/88, pela criação de novo tributo sem o preenchimento dos requisitos para sua imposição;

(ii) Art. 149 da CF/88, pela criação de verdadeira contribuição ou empréstimo compulsório por via oblíqua, usurpando competência outorgada exclusivamente à União Federal;

(iii) Art. 167, inciso IV, e 164, §3º da CF/88, em razão da violação ao princípio da não-vinculação ou não-afetação a receita de impostos a fundos, e ao princípio da unidade de tesouraria;

(iv) Art. 5º, inciso XXXVI, da CF/88, em virtude da violação ao princípio da segurança jurídica, ao princípio da confiança e a vedação de alteração de comportamento do Poder Público;

(v) Art. 150, inciso II, da CF/88, pela violação ao princípio da isonomia;

(vi) Art. 155, §2º, inciso I, da CF/88, em razão de violação à sistemática não-cumulativa do ICMS;

(vii) Art. 150, § 6º, e 155, § 2º, inciso XII, ‘g’, da Constituição Federal, pela criação de benefício fiscal sem autorização por meio de convênio CONFAZ;”

 

O Estado do RJ manifestou-se pelo não conhecimento da ADI 7162, por litispendência com a ADI 5635. Subsidiariamente, buscou desconstruir ponto a ponto as críticas ofertadas na inicial e requereu, se fosse o caso de adentar o mérito, a improcedência dos pedidos formulados.

Ao passo em que a AGU manifestou-se de modo similar, pela inadequação da ADI, a PGR manteve o posicionamento realizado na ADI 5635 e em agosto de 2023, nos autos da ADI 7162, emitiu “Parecer pelo deferimento da cautelar e, no mérito, pela procedência do pedido, para declarar inconstitucional a Lei 8.645/2019, do Estado do Rio de Janeiro, e por arrastamento, o Decreto 47.057/2020”.

Pois bem: enquanto a ADI 7162 dava esses seus primeiros passos, a ADI 5635 foi julgada: após depósito inicial de votos do relator[27] e divergente do Ministro André Mendonça[28], e o cancelamento de um pedido de destaque pelo relator[29] em 27/09/2023, o julgamento voltou à pauta para sessão virtual de 06/10 a 17/10/2023.

Em 17 de outubro, o STF finalizou a sessão virtual de julgamento da ADI 5635[30] e, por maioria, prevaleceu o voto do relator, Ministro Luís Roberto Barroso. Vencidos integralmente os ministros Mendonça e Fachin e, parcialmente, o ministro Zanin[31], por maioria de 7 votos a Suprema Corte decidiu parcialmente procedente a ADI, estabelecendo a seguinte tese:

 

“São constitucionais as Leis nºs 7.428/2016 e 8.645/2019, ambas do Estado do Rio de Janeiro, que instituíram o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal – FEEF e, posteriormente, o Fundo Orçamentário Temporário – FOT, fundos atípicos cujas receitas não estão vinculadas a um programa governamental específico e detalhado”

 

Considerando essa solução dada na ADI 5635, o Relator da ADI 7162, Ministro André Mendonça, houve por bem a extingui-la[32], a fim de evitar rejulgamento da mesma matéria recentemente decidida pela Corte:

 

“23. Nesse sentido, a despeito do notável esforço argumentativo da associação requerente no sentido de individualizar sua irresignação sob a perspectiva do setor econômico de petróleo e gás, considero que obstaculiza, neste momento processual, o seguimento da presente ação direta de inconstitucionalidade o resultado logrado na ADI nº 5.635/DF, à luz dos arts. 24, 25 e 26 da Lei nº 9.868, de 1999.

(…)

  1. Ante o exposto, não conheço da presente ação direta de inconstitucionalidade, nos termos do art. 21, inc. IX, e § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.”

 

 

VI – A Força irresistível e o objeto inamovível

 

Evidentemente, o STF decidiu pela compatibilidade macro dos fundos fluminenses com a Carta Magna, sinal de que em tese todos os argumentos apresentados pela CNI e pelos amigos da Corte restaram suplantados – mesmo aquele de que os fundos violam a não cumulatividade.

Mas o que a tese sozinha não evidencia são os fundamentos e as condições que precisam ser cumpridas para essa adequação constitucional dos fundos. Extraímos esses elementos do voto do Relator e da ata de julgamento, que refletem o julgamento de PARCIAL procedência:

 

“O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente o pedido formulado na presente ação direta de inconstitucionalidade, para conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 2º da Lei nº 7.428/2016 e ao art. 2º da Lei nº 8.645/2019, ambas do Estado do Rio de Janeiro, de modo a (i) afastar qualquer exegese que vincule as receitas vertidas ao FEEF/FOT a um programa governamental específico; e (ii) garantir a não cumulatividade do ICMS relativo ao depósito instituído, sem prejuízo da vedação ao aproveitamento indevido dos créditos; salientou que se aplicam aos depósitos em questão as regras próprias do ICMS;”

 

Ora, então o STF entendeu que FEEF e FOT são compatíveis com a CRFB/88 apenas porque são meros desdobramentos do ICMS, mas apenas quando a eles se aplica o mesmo contexto normativo, especialmente a não cumulatividade…

Tal qual adiantado em nossa introdução, contudo, breves testes se impõem a fim de viabilizar essa equiparação entre fundos e o ICMS em si:

  1. a) os fundos podem ser pagos da mesma forma que o ICMS, em um sistema de cotejo entre todos os créditos e débitos de dado contribuinte no período de apuração, com direito à acumulação e usos futuros?
  2. b) há destaque do valor recolhido aos fundos quando da emissão de notas fiscais de venda do alienante ao adquirente, permitindo a este – contribuinte de fato – a tomada dos créditos respectivos?

 

A resposta ao item “a” acima é negativa, como se verifica à luz do preceito a que alude, entre outros, o art. 2º do Decreto Estadual nº 47.057/2020, que exige um depósito em dinheiro apartado no referido fundo:

 

“Art. 2º A fruição de incentivo, benefício fiscal, financeiro-fiscal ou financeiro, já concedido ou que vier a ser concedido, fica condicionada ao depósito no FOT do montante equivalente ao percentual de 10% (dez por cento), aplicado sobre a diferença entre o valor do imposto calculado com e sem a utilização de benefício ou incentivo fiscal, financeiro-fiscal ou financeiro concedido a contribuinte do ICMS, de caráter geral e não geral, inclusive quando decorrente de regime especial de apuração, que resulte em redução do valor do ICMS a ser pago, nos termos do Convênio ICMS 42/2016 , de 03 de maio de 2016, já considerado no aludido percentual a base de cálculo para o repasse constitucional para os Municípios, de 25% (vinte e cinco por cento) do valor depositado.” (grifo nosso)

 

Está criado, portanto, o primeiro obstáculo entre a realidade normativa do Estado do RJ e a decisão do STF. A solução adequada, em nossa visão, seria ter declarado explicitamente inconstitucional a exigência de pagamento apartado; mas, ao menos por ora, não foi essa a posição da Corte Suprema.

O resultado do teste para o item “b”, até em decorrência da resposta ao item “a”, é igualmente negativo: se o depósito ocorre apenas após a apuração primária, é porque o valor do FOT não foi considerado caso a caso e não foi objeto de destaque em nota.

Recorda-se, embora o argumento se mostre ao fim tautológico: apenas a opção pelo inciso II da cláusula primeira do Convênio CONFAZ nº 42/16 (“II – reduzir o seu montante em, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício) viabilizaria um exercício adequado da não cumulatividade do ICMS – afinal, ainda que o STF não tenha concordado, só essa opção reflete de fato uma redução potencialmente legítima de benefício fiscal.

Ocorre que o STF edificou uma força irresistível (a submissão do FOT à não cumulatividade própria do ICMS), mas estabeleceu um objeto inamovível (as normas estaduais que disciplinam o FOT, embora impeçam a não cumulatividade real, foram declaradas constitucionais).

Se conseguirmos enxergar através desses antagonismos, assumidas a perspectiva de não cumulatividade contida na decisão e a realidade normativa de que os fundos em questão tornam-se um verdadeiro tributo direto para o contribuinte, geram-se (i) uma impossibilidade de creditamento respectivo por parte do adquirente, já que o valor correspondente não foi incluído na nota e (ii) a necessidade, então, de creditamento pelo alienante, que de modo inusitado consolida (não acidentalmente, mas estruturalmente) ambas as condições – de contribuinte de fato e de direito.

Se esta última for a solução encontrada, será preciso garantir aos contribuintes que possam se creditar a cada mês do recolhimento de FOT no mês anterior e ainda assegurar-lhes que recolham o FOT rigorosamente como se ICMS fosse – se disponíveis, com abatimento de créditos de cada estabelecimento.

É certo que esse recolhimento de forma separada e sem o destaque, como prescrito na legislação estadual e, por enquanto, aceito pelo STF, atende à conveniência da administração tributária, tornando mais prática a arrecadação e mais fácil a fiscalização. É preciso lembrar, no entanto, que a Suprema Corte, no julgamento do RE 593.849/MG (Tema 201 de repercussão geral), já teve a oportunidade de analisar os limites do princípio da praticidade tributária, oportunidade em que o decidiu que “o princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS”.

A situação, como se observa, não é nada simples, e a ela ainda se agregam discussões não resolvidas pelo STF, e que dessarte podem e devem ser tratadas mais concretamente pelos contribuintes, sobre a formação de base de cálculo do FOT: quais fenômenos devem ser considerados benefícios, e quais benefícios já são condicionados e não podem ser novamente onerados?

Em tempos de defesa intransigente da Constituição e do Estado Democrático de Direito, é importante lembrar a função primeva do direito tributário: impor ao Estado limites para a exigência de recursos dos particulares. Isso significa que os fatos da vida que sofrem a incidência tributária, a forma e quantidade em que sofrerão estão delimitados previamente por instrumento normativo aprovado pelo parlamento e desde que compatível com o texto constitucional.

Fica a mensagem final de esperança: não se observou ainda o trânsito em julgado; competirá ainda ao mesmo STF, na apreciação de prováveis Embargos de Declaração pela CNI e/ou manifestação de diversos amigos da Corte, desfazer esse paradoxo e resolver a questão com devida observância da realidade normativa fluminense.

[1] Lembremos da lição de Wiitgenstein: O que os nomes da linguagem designam deve ser indestrutível: pois deve-se poder descrever a condição em que tudo o que é destrutível é destruído. E nessa descrição haverá palavras; e ao que elas correspondem não se pode, então, destruir, pois, do contrário, as palavras não teriam significado. Não posso serrar o galho sobre o qual me sento. WITTGENSTEIN, Ludwig Von. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 48.

[2] https://www.conjur.com.br/2019-mar-01/limite-penal-projeto-anticrime-passaria-teste-kobayashi-maru, acesso em 05/11/2023.

https://www.youtube.com/watch?v=qs0J2F3ErMc, acesso em 05/11/2023.

[3] MELO, José Eduardo Soares de. ICMS – Teoria e Prática, 8ª edição. São Paulo: Dialética, 2005.

[4] BERGAMINI, Adolpho. Coleção Curso de Tributos Indiretos, Volume I – ICMS, 4ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

[5] Há a monofasia para combustíveis, na forma da EC nº 33/01 e Lei Complementar nº 192/22, de que falamos, entre outros, em https://tributarioemjogo.com.br/monofasia-do-icms-dos-combustiveis-lei-complementar-192-22-convenio-confaz-199-22-e-pecs-da-reforma-tributaria/, acesso em 05/11/2023.

[6] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS, 11ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

[7]ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 9ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2015.

[8]https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4307031&numeroProcesso=714139&classeProcesso=RE&numeroTema=745, acesso em 04/11/2023

[9] Art. 167. São vedados: (…)

IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

(…)

  • 4º É permitida a vinculação das receitas a que se referem os arts. 155, 156, 157, 158 e as alíneas “a”, “b”, “d” e “e” do inciso I e o inciso II do caput do art. 159 desta Constituição para pagamento de débitos com a União e para prestar-lhe garantia ou contragarantia.         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 109, de 2021)

[10] CARNEIRO, Claudio. Curso de Direito Tributário e Financeiro, 9ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[11] BELTRÃO, Irapuã. Resumo de Direito Tributário. Editora Impetus, Niterói, 2006, p. 40.

[12] https://www.confaz.fazenda.gov.br/menu-de-apoio/competencias, acesso em 04/11/2023.

[13] As alíquotas interestaduais de ICMS são as definidas nas Resoluções do Senado Federal nº 22/1989 e 13/2012, e são de 4%, 7% e 12%, a depender da origem da mercadoria e dos estados de origem e/ou destino.

[14] Art. 1º – As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei.

Parágrafo único – O disposto neste artigo também se aplica:

I – à redução da base de cálculo;

II – à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros;

III – à concessão de créditos presumidos;

IV – à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus;

V – às prorrogações e às extensões das isenções vigentes nesta data.

[15]https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1182&cod_tema_final=1182, acesso em 04/11/2023.

[16] COSTA, José Guilherme. “Princípio do destino/consumo do ICMS sobre combustíveis: exame jurisprudencial e perspectivas a partir da LC 192/22”. Artigo na obra coordenada por CARVALHO, Paulo de Barros. XIX Congresso Nacional de Estudos Tributários IBET – As Conquistas Comunicacionais no Direito Tributário atual. São Paulo: Noeses IBET, 2022.

[17] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2016/CV042_16, acesso em 04/11/2023.

[18] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4739288, acesso em 04/11/2023.

[19] https://www.conjur.com.br/2016-dez-20/gilson-rasador-inconstitucionalidades-fundo-equilibrio-fiscal, acesso em 04/11/2023.

[20]https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/01/entrevista-viramos-o-ano-com-r-12-bilhoes-em-caixa-isso-da-tranquilidade-para-trabalhar-diz-claudio-castro.ghtml, acesso em 04/11/2023

[21] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5114305, acesso em 05/11/2023

[22] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=612781934&prcID=5114305#, acesso em 05/11/2023

[23] https://www.oabrj.org.br/noticias/agu-defende-regras-fundo-equilibrio-fiscal-rio-janeiro, acesso em 05/11/2023.

[24] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=486888&ori=1, acesso em 05/11/2023.

[25] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6399394, acesso em 05/11/2023.

[26] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=760604470&prcID=6399394#, acesso em 05/11/2023.

[27] https://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5539096, acesso em 05/11/2023.

[28] https://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5724020, acesso em 05/11/2023.

[29] https://advds.com.br/publicacoes/tf-destaque-do-julgamento-acerca-da-constitucionalidade-de-leis-fluminenses-que-condicionaram-o-aproveitamento-de-incentivos-fiscais-de-icms-ao-deposito-em-favor-de-fundo-estadual/, acesso em 05/11/2023.

[30] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=516757&ori=1, acesso em 05/11/2023.

https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2023/10/18/stf-d-sinal-verde-para-cobrana-sobre-benefcio-fiscal.ghtml, acesso em 05/11/2023.

https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/stf-considera-constitucionais-fundos-do-rio-de-janeiro-ligados-a-beneficios-de-icms-21102023, acesso em 05/11/2023.

[31] https://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5890075, acesso em 05/11/2023.

[32] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15362177167&ext=.pdf, acesso em 05/11/2023.

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