Quais os requisitos para a aplicação de uma regra?

Anterioridade: Decretos com benefícios fiscais, sucessão presidencial, revogação dos benefícios.

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

Rodrigo Tomiello da Silva

José Guilherme Costa

No final de 2022, o Poder Executivo editou um conjunto de medidas tendentes a conceder benefícios fiscais com eficácia a partir de 1º de janeiro de 2023. Nesse contexto, em 30/11/2022 foram assinados pelo Vice-Presidente da República e publicados no Diário Oficial da União (DOU) três Decretos importantes.

O Decreto nº 11.321[1] instituiu um desconto de 50% (cinquenta por cento), incondicionado e sem limitação de prazo, para as alíquotas do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante – AFRMM.

Já o Decreto nº 11.322[2] reduziu quase à metade (de 0,65% para 0,33% e de 4% para 2%), de modo incondicionado e sem limitação de prazo, as alíquotas de PIS e COFINS incidentes sobre receita financeira para pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo.

 Ao cabo, e nas mesmas condições, surgiu o Decreto nº 11.323[3], que ampliou os benefícios do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores, instituído pela Lei nº 11.484, de 31 de maio de 2007.

Acontece que o novo Presidente da República, empossado no primeiro dia de 2023, produziu e fez publicar em 02/01/2023 o Decreto nº 11.374, que se autodenomina em vigor apenas a partir da data de sua publicação (art. 4º).

Partamos aqui do pressuposto de que tanto os Decretos de 2022 (instituidores dos benefícios) quanto o Decreto de 2023 (revogador dos benefícios) refletem livre e legítimo exercício da função presidencial prevista no art. 84, IV, da CRFB/88, sob pena de nos alongarmos em discussões acerca de estudos orçamentários prévios (art. 14, Lei Complementar nº 101/2000) e do princípio republicano.

Trataremos com mais vagar da revogação dos Decretos nº 11.321/22 e 11.322/22. Considerando que o Decreto nº 11.374/2023 passou a produzir seus efeitos apenas a partir de sua publicação, em 02/01/2023, então os Decretos de 2022 produziram todos os seus regulares efeitos por um dia.

Se o benefício valeu, ainda que por um dia, a revogação deve observar as regras de anterioridade previstas nos artigos 150, III (AFRMM, uma contribuição especial da espécie CIDE) e 195, §6º (Contribuição para PIS e COFINS, contribuições para seguridade social) da CRFB/88?

Então, como fica a aplicação das regras de anterioridade[4], declaradas como cláusula pétrea pelo Supremo Tribunal Federal (STF) [5] nos autos da Ação Direta/Declaratória de Inconstitucionalidade nº 939[6], para esse pacote de benefícios revogados[7]?

O STF (por exemplo, na ADI 5277[8] e ADI MC 7181[9]) tem jurisprudência recente no sentido de que o restabelecimento das alíquotas de PIS/COFINS pelo Poder Executivo, mediante a manipulação de coeficientes de redução (ADI 5277[10]) ou revogação de benefício anterior de PIS/COFINS (MC ADI 7181[11]), deve observar a anterioridade nonagesimal (noventena).

Tudo levaria a crer, portanto, que a cobrança do PIS e da COFINS sobre as receitas financeiras com base no Decreto nº 11.374/2023 (alíquota cheia de 4,65%) apenas seria constitucional após 90 dias contados da publicação ocorrida em 02/01/2023 (art. 195, §6º, CRFB/88) – período em que seria possível seguir com tributação minorada de 2,33%.

Por coerência, a cobrança integral do AFRMM com base no Decreto nº 11.374/2023, por sua vez, apenas seria constitucional a partir de 01/01/2024 (art. 150, III, b, CRFB/88) – termo até o qual seria possível seguir com tributação minorada em 50%.

É bem verdade que não se tem notícia de tamanha efeméride quanto essa sucessão de Decretos, motivo pelo qual não se pode garantir que as Cortes judiciais não promoverão um distinguishing[12] com a jurisprudência firmada pelo STF[13], sob o argumento de que a regra da anterioridade serve apenas à não surpresa – e que esta, no caso, não teria ocorrido (o que, desde já, aqui se nega também como premissa fática).

De fato, a solução para os casos concretos aqui especificados não parece será difícil, tanto que o atual (escrevemos estas linhas na chuvosa – ao menos em SP e no RS e RJ – manhã do dia 07/01/2023) Ministro da Fazenda reconheceu publicamente, especialmente para o caso de PIS e COFINS, a necessidade de aguardar a noventena[14].

Mas existe uma discussão abstrata subjacente e de imensa relevância, que na verdade nem é inédita em si, mas que em casos como o ora analisado se mostra ainda mais aguda: quais os requisitos para a aplicação, em dado caso concreto, da regra da anterioridade?

Não são novos os ataques dos entes tributantes à aplicação das regras de anterioridade pela suposta (uma presunção pró-fisco atentando contra uma regra estrita de defesa aos contribuintes!) ausência de surpresa por parte dos destinatários.

Exemplo recente, e refinado, é a discussão em torno do termo inicial de eficácia da Lei Complementar nº 190/2022[15] (LC 190), que trata de DIFAL ICMS e é objeto das ADIs nº 7066, 7070 e 7078[16] no STF, cujo julgamento em sessão virtual foi interrompido para destaque presencial[17] e que gerou artigos favoráveis[18] e contrários[19] à observância da regra de anterioridade.

O julgamento será reiniciado, mas até o momento a maioria dos ministros votantes atuou de forma coerente com a jurisprudência do STF, acolhendo a necessidade de se observar a anterioridade constitucional da referida LC 190, publicada em 05/01/2022 – como defende, entre outros, o professor Heleno Taveira Torres[20].

Particularizando nossa dialética: seria possível negar a aplicação da regra da anterioridade em um caso no qual a norma concessiva de benefício foi revogada apenas três dias depois da norma instituidora do referido benefício, sendo certo que ela produziu seus efeitos por apenas um dia?

Não resta nenhuma dúvida de que o valor que inspirou as normas de anterioridade é o da não surpresa (evitar que contribuintes sejam surpreendidos por atos de Império que produzam efeitos sobre suas práticas e seus patrimônios); a doutrina quase uníssona aponta nesse sentido.

Acontece que um valor que inspirou uma regra não pode ser usado como requisito/condição/ônus para a sua não aplicação, ainda mais quando notamos que a anterioridade busca fundamento também em valores diversos, como ensina o professor Paulsen: “anterioridade é garantia de conhecimento antecipado da lei tributária mais gravosa. Não se trata apenas de prover previsibilidade ou não surpresa[21].

Mas vamos supor a viabilidade de flexibilização, de ponderação… quanto dias, horas e minutos seriam necessários para configuração da não-surpresa? Demonstrar surpresa seria um ônus dos contribuintes ou seria dever do Fisco mostrar a não-surpresa? Qual seria o critério para isonomia administrativa e jurisdicional na aplicação dessa ponderação?

Aqui tomamos posição: nenhuma dessas perguntas deveria ser verdadeiramente cogitada, ainda mais em cenário como o sob exame; o mundo real se move de modo extremamente célere. Um ato normativo de benefício tributário publicado na manhã de um dia pode naturalmente determinar uma alteração substancial na atuação de um segmento e promover impactos significativos de expectativa no mercado. Um indício desta realidade está nos movimentos da cotação de valores mobiliários no mercado regulado em retorno não apenas a políticas e normas, mas a interpretações, possibilidades, vieses etc. A própria conceituação de fato relevante para obrigatoriedade de divulgação de conteúdo ao mercado poderia ser aplicável: a alteração tem potencial para impactar na cotação dos valores mobiliários? Se sim, a hipótese é de publicação obrigatória, e assim pode(ria) ser interpretada a norma tributária e a não surpresa.

Os críticos à ideia de que o contribuinte é mero destinatário do Direito poderiam eventualmente trabalhar a ideia de que a sociedade se faz representar e pode atuar de modo positivo e participativo na produção das normas. Ora, isso é uma possível (longe de inexorável, na visão destes estudantes) verdade tão somente quando as normas se submetem à apreciação do Poder Legislativo e passam pelo devido processo de deliberação nas respectivas comissões.

Argumento muito semelhante foi adotado pelo STF no julgamento da ADI 2213, oportunidade em que foi viabilizado o controle de constitucionalidade dos requisitos de urgência e relevância em Medidas Provisórias. Não se está a esvaziar o dispositivo constitucional que legitima sua utilização pelo Executivo, mas tão somente sua conformação ao texto constitucional evitando, nas palavras do relator:

…embora conceitos jurídicos relativamente indeterminados e fluidos, mesmo expondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do Presidente da República, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disciplina as medidas provisórias, qualificando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo Chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela Constituição da República.

Tal argumento, contudo, é de muito mais complexa aderência quando tratamos de atos assinados apenas pelo Executivo, como é o caso exatamente dos Decretos: atos normativos sem projetos prévios, emanados dos gabinetes e sem qualquer sorte de potencial deliberação popular.

Logo, se o constitucionalismo se materializou com a Magna Carta em 1215 e se aperfeiçoou com os modelos oriundos das revoluções burguesas do século XVIII[22] exatamente para conter os poderes ilimitados de um monarca, talvez em 2023 seja prudente reforçar a necessidade de que regras constitucionais precisam ser aplicadas em defesa dos contribuintes (meros destinatários do Direito, por vezes no meio de fogo cruzado entre entes Federativos), especialmente quando os conflitos parecem ser, na verdade, entre os Poderes de hoje e de ontem (e por vezes atuam menos como representantes e mais como Reis).

Em conclusão: quando, de modo estruturado, os Poderes passarem a produzir o Direito em efetiva coordenação com a sociedade, quando a tributação for resultado de um diálogo institucional e estruturado com os contribuintes, aí será o tempo de medir a aplicação das regras à luz dos valores que as inspiraram.

Até lá – e que trabalhemos sim, junto com a vanguarda dos poderes constituídos, para que se alcance o mais brevemente esse momento –, porém, que se apliquem as regras constitucionais de proteção aos contribuintes na exata medição entre os fatos subjacentes e a métrica objetiva de incidência.

E nada mais.


[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11321.htm

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11322.htm

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11323.htm

[4] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/decreto-sobre-pis-cofins-pode-ser-questionado-na-justica-por-nao-prever-noventena-04012023

[5] CARNEIRO, Claudio. Curso de Direito Tributário e Financeiro, 9ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, versão digital.

[6] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266590

[7] https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/odorizzi-pires-pacote-tributario-revogacao-anterioridade

[8] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4739288

[9] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6418558

[10] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755430558

[11] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=762161023

[12] https://projetotcmrj.jusbrasil.com.br/artigos/748047398/o-que-e-distinguishing-e-overruling-e-como-afastar-a-incidencia-de-um-precedente-judicial

[13] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/07/10/precedentes-que-nao-pegam.ghtml

[14] https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/01/02/haddad-estima-perda-de-r-10-bi-a-r-15-bi-com-medidas-dos-ultimos-dias-de-governo-bolsonaro.ghtml

https://www.acessa.com/economia/2023/01/119908-haddad-diz-que-medidas-de-bolsonaro-causaram-prejuizo-irrecuperavel-de-ate-rs-15-bi.html

[15] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp190.htm

[16] https://www.conjur.com.br/2022-out-31/opiniaonova-inclusao-difal-icms-pauta-stf

[17] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=498947&ori=1

[18] https://www.migalhas.com.br/depeso/357698/por-que-o-difal-nao-pode-ser-cobrado-pelas-ufs-de-destino-em-2022

[19] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/anterioridades-difal-de-icms-muito-barulho-por-nada-25012022

[20] https://www.conjur.com.br/2022-nov-10/consultor-tributario-icms-difal-sujeito-anterioridade

[21] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo, 11ª edição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, versão digital, item 55.

[22] https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42296/as-revolucoes-burguesas-e-seu-legado-na-construcao-do-ordenamento-juridico-brasileiro-do-constitucionalismo-ao-controle-de-constitucionalidade

https://indexlaw.org/index.php/teoriaconstitucional/article/view/6507/pdf

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