Entre laranjas e maçãs: a saga dos precedentes brasileiros

José Guilherme Costa

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

Rodrigo Tomiello da Silva

 

I – Laranjas, maçãs e segurança

 

Em uma certa série infantil famosa e de origem mexicana, em dado episódio ambientado durante uma aula, verificamos o seguinte diálogo entre o professor e o protagonista da série, um aluno da turma[1]:

 

– Supondo que eu tenha quatro laranjas e que eu coma uma, quantas laranjas me restam?

– Essa é muito fácil; faça outra mais difícil!

– Está bem, mas primeiro me responda esta: quantas me restam?

(…)

– Bom, eu sabia isso era com maçãs!

 

Primeiro, ao óbvio: nos limites do acima, para responder à pergunta não deveria interessar serem maçãs, laranjas, jacas ou elefantes; o que conduz o raciocínio não é a literalidade da pergunta ou da resposta, mas a lógica subjacente ao problema apresentado – isto é, que, “4 unidades menos 1 unidade é igual a 3 unidades”.

É claro que a lógica Matemática é, ao menos neste nível de números inteiros, incontestável, segura e imutável: 4 menos 1 sempre será igual a 3, então não deveria importar, para fins de solução do problema ofertado, a característica do elemento em subtração.

Então tentemos aplicar ao problema matemático a lógica mais fluida, própria dos desafios jurídicos que se apresentam aos decisores; sem as certezas sólidas e imutáveis, em tese haveria ao menos duas formas de se construir uma resposta diferente do aluno ao professor: (i) para todo e qualquer caso futuro, 4 menos 1 deixa de ser igual a 3, e aí teremos superado a certeza firmada nos fundamentos da resposta até então vinculante ou (ii) apenas para algumas unidades (no caso do nosso exemplo, frutas diferentes) específicas há diferença suficiente para não incidir a regra geral, que seguiria hígida em si considerada.

Em uma redução para a qual pedimos licença poética, vamos chamar a técnica (i) de superação e o método (ii) de distinção.

Ademais, a partir deste momento, não será mais importante avaliar se está correta ou não a premissa lógica firmada.

Pretendemos mostrar que o sistema de precedentes brasileiro, sem os devidos cuidados, pode dar razão a contestações como a do personagem aluno na série infantil.

Uma observação se faz necessária antes de prosseguir: o que dissemos até aqui não repristina o positivismo em qualquer de suas vertentes. A diferença apontada acima se encontra no paradigma pós positivista e consideramos a indissociabilidade de questões de fato e de direito.

O destaque à alegoria matemática serve a demonstrar que nessa quadra da história não há (ou não deveria haver) espaço para subjetivismos, e a coerência é essencial para a construção de um Direito que cumpra seu propósito[2].

 

 

II – Breves desafios dos sistemas clássicos de precedentes

 

Um grande diferencial do precedente jurisdicional, que ousamos apenas pincelar, é que funciona como um líder; ele nada é em si mesmo. Sozinho, ele é apenas um julgamento isolado – com potencialidades, verdade; mas nada além disso.

Se é o surgimento dos seguidores que transforma uma pessoa em um líder, é a quantidade de julgamentos observando fielmente seu comando nuclear que qualifica a essência de um julgamento paradigma como precedente.

Por excelência e natureza, um precedente não nasce pronto; ele se aperfeiçoa e, se for adequadamente refletido nos que o seguem, assim se qualifica.

Mas como devemos identificar os elementos que constituem o que ousamos denominar precedente? Quando ouvimos professores e magistrados ingleses sobre a formação de precedentes no Sistema clássico do Common Law, é possível notar que um dos principais desafios dos advogados, julgadores e estudiosos está em identificar, nas decisões tomadas, os elementos que funcionaram como seus fundamentos necessários e indispensáveis.

Na maioria dos casos, esta não é uma tarefa nada fácil, mas é o resultado dessa “mineração”, em contexto de stare decisis, que constitui o precedente a ser obrigatoriamente observado nos demais casos que carreguem consigo núcleos de discussão suficientemente similares.

Nesse aspecto, a lógica da vinculação de precedentes não é tão diferente da interpretação dos fatos  jurídicos – seja  a partir dos agentes eleitos que compõem o Poder Legislativo (como é praxe em Estados Democráticos de Direito), seja a partir da superação da dificuldade contramajoritária e fruto da Jurisdição em ambiente de maior ativismo.

O precedente clássico, portanto, é de difícil extração, mas reflete toda a cadeia lógica de raciocínio e edificação de elementos jurídicos  concretos, aptos  a resolver aquele caso específico, mas suficientemente abstratos a viabilizar sua aplicação em todos os casos afins.

Cotejando essa construção ao nosso exemplo inicial, o precedente no Common Law é a formatação lógica fundamental (dispensados argumentos de mero suporte, pois) a partir da qual se extrai que, mantido o ordenamento apreciado quando do julgamento, quaisquer 4 unidades, quando subtraídas de 1 unidade, se tornarão apenas 3 unidades.

No Common Law, portanto, haverá as opções de não se vincular ao precedente sempre que (i) o ordenamento mudar (explicitamente ou por mutação, diga-se) ao ponto de que o 4 menos 1 não seja mais 3 (overruling) e (ii) as “unidades” apresentadas ao juízo não permitirem seu emprego na equação predeterminada (distinguishing).

 

 

III – O sistema brasileiro de precedentes

 

A ideia brasileira de vinculação a precedentes ganhou poderio extra com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, que prevê a eficácia vinculante de julgamentos tidos como repetitivos e em repercussão geral.

Em recentes comentários públicos, alguns estudiosos da jurisprudência nacional e ministros do Supremo têm esclarecido que, ao contrário do que se dá no ambiente da Common Law – no qual, como mencionamos, é complexo o desafio de entender os limites dos precedentes –, o sistema brasileiro simplifica ao extremo: serão vinculantes tão somente os limites das teses firmadas pelos Tribunais.

Por um lado, isso aparentemente tornaria mais simples o trabalho dos aplicadores do Direito: se apenas o verbete da tese tem força normativa, há muito menos a ler e pesquisar, e maior seria a segurança no exercício de tipificação/coordenação/afinidade aos demais casos concretos.

Contudo… será que reduzir a eficácia vinculante apenas à tese, desconsiderando os fundamentos que a constituíram, traz ao ordenamento a segurança jurídica necessária e promove as devidas uniformização jurisprudencial e pacificação social?

É dizer: será que afirmar que “quatro laranjas menos uma laranja tem como resultado três laranjas” basta? Ou seria preciso reconhecer que essa tese se baseia em uma verdade (certa ou errada, repisamos!) de que 4 unidades menos 1 unidade é igual a 3 unidades?

Ficar apenas na primeira afirmação (na nossa tese fictícia) permitiria que a resposta do Judiciário fosse diferente para maçãs, considerando o mesmo ordenamento vigente na resposta dada para o caso das laranjas?

E, se a resposta fosse diferente, seria possível justificar apenas porque maçãs e laranjas são frutas diferentes ou haveria o ônus de desdizer a regra básica que serviu de premissa à declaração sobre as laranjas?

Vamos a um exemplo um pouco mais concreto: no Tema de Repercussão Geral nº 69, o STF afirmou que o ICMS não compõe a base de cálculo de PIS/COFINS, especialmente porque um tributo indireto – como o ICMS – não se qualifica como receita do contribuinte, mas do Estado.

Como laranjas e maçãs, ICMS e ISS são tributos diferentes. Mas seriam eles suficientemente diferentes ao ponto de justificar uma distinção de tratamento na solução do Tema de Repercussão Geral nº 118[3]?

Perguntando de outra forma: quando o ICMS não compõe a base de cálculo de PIS/COFINS, mas o ISS a compõe, é devido a diferenças entre ICMS e ISS ou é apenas o reflexo de que o órgão julgador mudou de opinião quanto aos fundamentos determinantes do julgamento sobre o ICMS?

E quando se poderia admitir como legítima essa mudança de opinião sobre a fundamentação basilar do julgado? Bastaria alterar a composição da Corte Julgadora?

Não nos compete aqui esgotar a questão, mas trazer o tema a lume para provocar nossos leitores. Como sugestão, um estudo profundo sobre o tema pode ser encontrado na obra do Professor Michel Hernane Noronha Pires[4].

Retomando, agora no prisma da distinção: qual o nível da relevância das diferenças entre esses dois impostos para justificar, se mantidos os fundamentos determinantes do primeiro caso, resultados diametralmente opostos?

Se assumirmos que a eficácia vinculante se limita gramaticalmente à redação das teses, será perfeitamente possível indicar que a mera distinção de ICMS para ISS (ou qualquer outro tributo) basta a distingui-los e julgar com total liberdade.

Nesse passo, é imperativo chamarmos a atenção para o retorno (ou talvez o reconhecimento) de que nunca abandonamos o positivismo no Brasil.[5] Afinal, por mais que nos debrucemos sobre sofisticadas teorias que pretensamente superaram o positivismo, mesmo aquelas que ainda apostam na subjetividade em algum grau, em verdade continuamos reféns dos silogismos – agora com novas “premissas maiores”, que são os verbetes reproduzidos nas “teses” dos precedentes.

A interpretação do direito continua sujeita ao que os tribunais dizem que é, mormente na jurisdição constitucional, que é a última palavra institucional do direito. A problemática do ICMS e ISS, calcada em um diferencial existente (o primeiro é não cumulativo, o segundo cumulativo é), mas talvez pouco relevante, pode revelar algum grau de discricionariedade com que as decisões são exaradas na superação de precedentes, até aqueles recentemente firmados.

Para podermos causar o choque que pretendemos: se assumirmos o acima, o STF só conseguirá de fato produzir pacificação social e resguardar a segurança jurídica (e respeitar sua própria jurisprudência) quando tiver uma tese para cada espécie, específica a ponto de cobrir os gêneros, já que os fundamentos determinantes não vinculariam os demais julgadores.

Em outras palavras, os precedentes se tornam enunciados normativos sem qualquer distinção substantiva dos textos legais que geraram a controvérsia que chegou ao Judiciário. Qualquer distinção fática, mínima que seja, se extravasar a gramática da tese será suficiente a provocar uma nova análise das premissas jurídicas que embasaram o precedente.

Longe de estarmos cindindo questões de fato e de direito, estamos somente apontando a autofagia do modelo mantidas situações e compreensões como as descritas. Se somente as teses vinculam, e com as limitações verificadas (como no caso ICMS x ISS), então os precedentes à brasileira podem acabar servindo mais à manutenção das razões que fundamentaram sua criação (celeridade, isonomia, segurança etc.), e não à solução delas.

E esse tipo de interpretação já causa danos ao sistema de precedentes, afinal, se a situação acima é suficiente para afastar a aplicação das razões fixadas no precedente, não se trata propriamente de uma superação do precedente (overruling – algo que apenas a Corte que o fixou poderia fazê-lo), mas da técnica do distinguishing, que pode ser aplicada por qualquer juiz. Observando esse fenômeno, o CNJ editou a Resolução nº 134/2022, por meio da qual recomendou, entre outros, moderação aos juízes na utilização dessa técnica, que muitas vezes serve como “via indireta” para superação de precedentes[6].

Como se percebe, ou avançamos com o Sistema de Precedentes Brasileiro tendo isso em vista, ou respostas como a do aluno na série de comédia passarão a ser realidade frequente, e serão necessárias infinitas teses – que infelizmente podem ser até distintas entre si – dependendo da fruta na pergunta e na resposta[7].

[1] https://www.youtube.com/watch?v=nFQEIOAEjk4&pp=ygUgY2hhdmVzIGV1IHNhYmlhIGVzc2EgY29tIG1hw6dhcyA%3D, acesso em 24/10/2023.

[2] Somos refratários ao positivismo em qualquer de suas formas por considerá-lo insuficiente para a construção de uma teoria da decisão. Estamos mais próximos à teoria estruturante da norma, de Friedrich Müller, assim definida nas palavras de Georges Abboud: “A teoria estruturante da norma de Friedrich Müller é marcada por uma concepção pós-positivista, que não apenas aposentou a confusão entre texto e norma, mas, também, a ficção da decisão judicial por meio de um processo lógico silogístico, como se a norma já estivesse na lei, e uma simples subsunção permitisse sua aplicação”. ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. Ebook.

[3] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=118

[4] PIRES, Michel Hernane Noronha. A Superação dos Precedentes Vinculantes – Como se justifica a revogação de um precedente? Curitiba, Editora Direito Contemporâneo, 2023.

[5] Isso porque, caso o cientista dissesse qual é a melhor interpretação dessa mesma norma, estaria proferindo juízos de valor que, enquanto herdeiro da Escola de Viena, acreditava se tratar de enunciados que não tinham rigor científico. Eram apenas opiniões políticas, ideológicas, morais, crenças religiosas etc. No entanto, na prática judiciária, o juiz precisa aplicar a norma ao caso concreto. Não pode apenas descrever o Direito. Por isso, a prescrição decorrente do ato de aplicação do Direito (sentença) será um ato de vontade, pois ele escolhe qual a interpretação da norma que lhe convier, segundo sua subjetividade, suas crenças etc. STRECK, Lenio L. Dicionário de Hermenêutica. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.p.162. Grifo nosso.

[6] Ver https://www.conjur.com.br/2022-set-13/cnj-recomenda-distinguishing-nao-sirva-enfraquecer-teses, acesso em 24/10/2023.

[7] Além de toda literatura já disponível sobre o pós-positivismo e as tentativas de superação do decisionismo, especialmente a crítica hermenêutica do direito, lembremos da lição do pintor Basil, personagem de Oscar Wilde, expondo a natureza do processo de atribuição de sentido (Sinngebung) da hermenêutica da matriz gadameriana: “Harry, todo retrato pintado com sentimento é o retrato do artista e não do modelo. O modelo é um mero acidente, uma ocasião. Não é ele quem o pintor revela; é muito mais o pintor que, na tela colorida, revela-se a si mesmo. E o motivo por que não irei exibir o quadro é o de ter exposto, nele, o segredo de minha própria alma.” WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. trad. José Eduardo Ribeiro Moretzsohn. Ebook.

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