O Inadequado Uso de Representação Fiscal para Fins Penais

Micaela Dominguez Dutra

Hoje estamos vivendo um momento interessante no Contencioso Tributário, ainda mais se ele for estadual: o inevitável desdobramento de qualquer discussão tributária na esfera penal.

Existem Estados em que praticamente toda a autuação fiscal vem acompanhada da lavratura de uma representação fiscal para fins penais, sem que, muitas vezes, haja, inclusive, multa qualificada pela prática de dolo, fraude ou simulação. E qual é o problema disso?

O total desvirtuamento do direito penal.

Veja, uma conduta para ser tipificada como crime deve macular um bem jurídico extremamente relevante para o Estado, afinal o direito penal é a ultima ratio, pois afeta a liberdade do indivíduo. Exatamente por isso a sua finalidade não é cobrar dívidas, para isso já existe o direito tributário e o direito processual tributário.

Não se está defendendo aqui que não deva haver crimes contra a ordem tributária. Eles precisam existir pois a sonegação destrói a estrutura do Estado, que precisa de recursos para poder exercer as funções que lhe foram atribuídas pela Carta Constitucional. Quem sonega deixa de exercer o dever fundamental de pagar impostos, que é essencial para a vida em sociedade, onde predominam Estados Fiscais.

Contudo, os crimes contra a ordem tributária, veiculados em regra na Lei nº 8137/1990 e nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, não apresentam modalidade culposa, devendo ser aferida para a sua consumação a presença clara de dolo direto ou eventual por parte do agente. Lembre-se que não existe crime contra a ordem tributária em face de pessoa jurídica, mas só física.

Então, para que se possa pensar em apurar algum crime, essencial é demonstrar que o agente sabia que devia o tributo e agiu no sentido de não o pagar.

Diferentemente é a situação do contribuinte que não realizou um pagamento de tributo por entender que esse não é devido. Ou seja, nessa hipótese não existe dolo de sonegar e sim clara divergência de entendimento entre a visão do Fisco e a do contribuinte quanto determinada exigência fiscal. O que é absolutamente normal e válido num Estado Democrático de Direito.

Nesse caso essa divergência vai se consubstanciar num processo administrativo, onde se o contribuinte não lograr êxito pode permanecer em uma lide levada ao Poder Judiciário para solução final.

Portanto, não faz sentido algum se utilizar a representação fiscal para fins penais em casos em que a autuação é motivada apenas por divergências de entendimento entre o fisco e o contribuinte. Não havendo conduta dolosa, fraude ou simulação, inexiste razão para a elaboração de representação fiscal para fins penais.

Essa duplicidade de esferas de discussão, além de representar claro desvirtuamento do direito penal – usado como forma de coagir o contribuinte a pagar o tributo – representa gasto indevido de recursos públicos, afinal estaremos tomando tempo da policia e do ministério público, quiçá até de um juiz de vara criminal, para abordar uma questão que não tem nada que ver com sonegação fiscal, mas sim com o mero direito de interpretar de forma diversa a legislação tributária.

Um exemplo de como se gastou recursos indevidamente com esse acionamento equivocado da esfera penal para simples divergência tributária está consubstanciado no recente julgamento realizado pelo STF na ADC 49, que apenas reforçou o que já estava fixado no enunciado 166 da sumula de jurisprudência do STJ, no sentido de que não existe incidência de ICMS na transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte tendo em vista que não existe a circulação jurídica, verificada com a mudança de propriedade do bem, a qual é essencial para a ocorrência do fato gerador do ICMS.

Todos os Estados, apesar da sumula 166 do STJ, autuavam os contribuintes exigindo o pagamento de um tributo claramente indevido. E pior, emitiam representações fiscais para fins penais. Vejam, no âmbito do direito tributário a cobrança já era absurda, imagina a discussão no âmbito penal? Ela inexiste, poder-se-ia até pensar em excesso de exação por parte do fiscal autuante.

A Administração Pública tem como nortes de atuação a moralidade, ética, legalidade e eficiência, tudo se encontra no caput do art. 37 da CRFB como mandamento geral para as administrações de todas as esferas que compõe a nossa federação. Desse modo, agir de forma a criar um aumento desnecessário de gastos, com uso ineficiente de recursos ou desvirtuamento de instrumentos legais viola claramente esses princípios orientadores da conduta da Administração, além de poder ensejar responsabilidade criminal e civil por eventuais danos causados em razão dessa conduta absolutamente leviana.

Precisamos perseguir sonegadores e não vulgarizar os instrumentos penais para tentar impor o pagamento de tributo com o qual o contribuinte não concorda e busca, por meio de seu direito fundamental de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CRFB), evitar legitimamente seu pagamento junto ao Poder Judiciário.

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