ADC 49 e Temas de Repercussão Geral 1099, 881 e 885; Os riscos da onipotência jurisdicional e as oportunidades pontual e estrutural de solução

Geise Emilie Fonseca Balbino 

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

Rodrigo Tomiello da Silva

José Guilherme Costa

 

 

I – Breve Introdução

 

Discutir a suposta relativização da coisa julgada, em qualquer grau, resulta em intensas ansiedade e insegurança jurídica. Esta é uma história complexa, admitimos desde a primeira linha – e não será contada de modo temporalmente linear, porque o problema parece ter surgido no seu mais recente capítulo. A metodologia adotada reflete nossa intenção de demonstrar o quanto a não uniformidade no uso de grandes poderes pode acarretar relevantes percalços.

É evidente que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos TRGs 881 e 885, ao fixar o entendimento de que a atualização ou mudança na sua jurisprudência vinculante cassa automaticamente a eficácia prospectiva da coisa julgada em relações tributárias de trato continuado, revelou não apenas a dosagem do poder que lhe é atribuído, mas também suas inexoráveis consequências, considerando que o julgamento teve como objeto direto a discussão do recolhimento da Contribuição Federal Sobre o Lucro Líquido (CSLL), mas o decidido traz diversos impactos para todos os demais tributos que são recolhidos de forma continuada.

Pretendemos demonstrar como o Poder Supremo de Criação de Novo Direito pode ter sido praticado – como antecipamos em nossas preocupações quando de nossa análise inicial do julgamento sobre a erosão automática dos fundamentos para manutenção de eficácia da coisa julgada em relações jurídicas tributárias continuadas[1] – sem todos os cuidados recomendáveis.

Portanto, cabe aqui tentar demonstrar eventuais desavenças atualmente causadas no ordenamento jurídico, usando como exemplo, frente ao julgamento dos TRGs 881 e 885, a ADC 49 – que teve por cerne afastar de modo erga omnes e vinculante a incidência do ICMS em operações entre unidades da mesma pessoa jurídica, mediante a sua recente e tumultuada modulação dos efeitos e o potencial recrudescimento da insegurança jurídica dele decorrente.

 

 

II – Estado dos julgamentos da ADC 49 e dos TRGs 881, 885 e 1099

 

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou, em abril de 2023, o julgamento do Embargos de Declaração na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49/DF[2] (Relator Ministro Edson Fachin), com modulação temporal (a partir de 2024)[3] e ainda sem trânsito em julgado.

O mesmo STF, em sessão presencial finalizada em fevereiro de 2023, decidiu – por unanimidade no mérito e por maioria apertada na não modulação temporal[4] – os Recursos Extraordinários (REs) 949.297/CE[5] (Relator para acórdão Ministro Roberto Barroso) e 955.227/BA[6] (Relator Ministro Roberto Barroso), fixando as Teses de Repercussão Geral[7] (TRGs) 881[8] e 885[9], ainda sem trânsito em julgado e pendente julgamento de embargos de declaração nos quais se pede exatamente modulação ex nunc[10].

Ainda o STF, em agosto de 2020, havia julgado o Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) ARE 1.255.885/MS (Relator Ministro Dias Toffoli) e fixado a TRG 1.099[11], sem qualquer modulação temporal (eficácia portanto ex tunc) e com trânsito em julgado certificado em outubro de 2020.

 

 

III – Nasce (retroativamente) o Poder!

 

O STF, ao estabelecer os TRGs 881 e 885, declarou-se como criador de um Novo Direito, ao menos em matéria tributária, toda vez que decide em controle abstrato/concentrado de constitucionalidade (ADIs, ADCs, ADPFs, ADOs) e no controle concreto/incidental de constitucionalidade, este apenas quando exercido em repercussão geral.

 

1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

 

  1. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”

 

Mas não só: como adiantamos, e por maioria, o Supremo entendeu – reitera-se, ainda sem trânsito em julgado – que essa criação de novo Direito não foi contemporânea à edificação dos TRGs 881 e 885; ela remonta às decisões em controle abstrato ou fixação dos demais temas de repercussão geral, ainda que anteriores.

 

 

IV – TRG 1099: Novo Direito ou Efeméride?

 

Ora, mantidas as premissas dos TRGs 881 e 885, constituem-se como “Novo Direito” absolutamente todos os temas de repercussão geral tributários que digam respeito a relações jurídicas tributárias continuativas.

Um deles – ao qual dedicamos este estudo – é o TRG 1099, que traz a seguinte tese: “Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia.

Essa construção jurisprudencial não é nova e remonta a farta jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (súmula 166 e Tema de Recurso Repetitivo – TRR – 259) e do STF sobre o tema, como suscitamos em artigo contemporâneo ao julgamento de mérito da ADC 49[12].

Se unirmos os TRGs 881 e 885 ao 1099, deveremos compreender que, sem quaisquer limites de tempo, e sem possibilidade de nova contestação judicial após agosto de 2020, é juridicamente inviável a qualquer Unidade Federativa (UF) cobrar ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação) sobre mera transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica contribuinte.

É claro que se poderia admitir que um Novo Direito posterior alterasse essa realidade jurídica afirmada pela Suprema Corte. Poderia, por exemplo, ser elaborada e promulgada uma Emenda à Constituição que alterasse os elementos jurídicos que compõem a matriz de incidência do ICMS e, assim, demandasse uma revisão do tema pelo STF.

O que não se deveria esperar – mas se temia – era uma revisão pelo próprio STF em 2023, no julgamento dos Embargos de Declaração da ADC 49, que pode fragilizar imensamente o “Novo Direito” firmado no TRG 1099.

Explicamos.

 

 

V – EDs na ADC 49: A modulação saiu pela culatra?

 

No julgamento de Embargos de Declaração, por 6 votos a 5, prevaleceu o voto do relator, Ministro Edson Fachin. Em síntese, referido recurso restou assim decidido:

– foi reafirmada a irrelevância jurídico-tributária, para ICMS, da mera circulação física de mercadoria entre unidades da mesma pessoa jurídica;

– foi afastado o risco de estorno do crédito tomado pela unidade remetente na transferência: essas saídas meramente físicas não afastam o crédito pela operação anterior;

– ainda vige o princípio da autonomia de estabelecimentos, especialmente para efeitos instrumentais, apenas não se chegando ao limite de considerar cada unidade uma pessoa jurídica distinta para fins de tributação nas transferências;

– foi afirmado o direito – de eficácia contível, não limitada – a transferência plena de créditos entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica; e

– ocorreu uma modulação temporal: e vejamos aqui que viés interessante, porque o STF nunca tinha dito algo diferente do que restou nuclearmente decidido, mas decidiu modular ainda assim para que sua decisão valha apenas a partir de 2024.

“No cenário de busca de segurança jurídica na tributação e equilíbrio do federalismo fiscal, julgo procedentes os presentes embargos para modular os efeitos da decisão a fim de que tenha eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. Exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos.”

 

Mas, afinal, o que teria sido modulado na ADC 49 e por qual motivo chamamos atenção para o fato de ter sido criado um problema potencialmente grave nesse julgamento? Compreendemos que uma tentativa de resposta minimamente adequada a esse questionamento nos exige repassar alguns pontos do julgamento em estudo:

Em sua inicial, o governador do Rio Grande do Norte (RN) requereu fosse ratificada a constitucionalidade dos seguintes dispositivos da LC 87/96 (ou, subsidiariamente, declarados inconstitucionais com eficácia apenas prospectiva):

“Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é:

(…)

  • 3º Para efeito desta Lei Complementar, estabelecimento é o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias, observado, ainda, o seguinte:

(…)

II – é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular; (Vide ADC 49)”

 

“Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:

I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular; (Vide ADC 49)”

 

“Art. 13. A base de cálculo do imposto é:

(…)

  • 4º Na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto é: (Vide ADC 49)

I – o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria;

II – o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento;

III – tratando-se de mercadorias não industrializadas, o seu preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente.”

No mérito, em julgamento encerrado em 16/04/2021, o STF por unanimidade, nos termos do voto do relator, simplesmente julgou improcedentes os pedidos na ADC, enfrentando dilemas que se constituíam quase como um paradoxo[13]:

 

“Ante o exposto, julgo improcedente o pedido da presente ação, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar Federal n. 87, de 13 de setembro de 1996.”

 

Foi, ato contínuo, interposto o recurso de Embargos de Declaração pelo Estado de RN, pedindo concessão de efeito suspensivo e:

 

“a) a modulação temporal “de forma a resguardar a validade de todas as operações realizadas e não contestadas judicialmente à data do julgamento da ADC (19/04/2021), determinando-se a produção de efeitos da pronúncia de nulidade apenas a partir do exercício financeiro subsequente à conclusão do julgamento”; e

 

  1. b) que fosse esclarecida a sobrevivência da regra de autonomia do estabelecimento: “esclarecer a amplitude da decisão quanto à autonomia dos estabelecimentos, prevista no artigo 11, § 3, II, da Lei Kandir, mantendo-se a norma seja no ordenamento jurídico, dada sua relevância e compatibilidade com o texto constitucional, sendo extirpada, apenas, a sua incidência em caso de transferências de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular, por meio da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto.”

 

Relativamente a um dos pleitos, foi negado provimento ao EDs e reafirmado que, desde a origem do julgamento, estava claro que não seria exigido estorno dos créditos pela entrada, sob o argumento de irrelevância jurídica da “saída de mera transferência”:

 

“Inicialmente, destaco que não há que se falar em omissão quanto a eventual possibilidade de estorno dos créditos até então adquiridos pelos contribuintes. A decisão, ora embargada, foi clara ao determinar a irrelevância da transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte para fins do ICMS.

(…)

À vista disso, fica evidente que devido a sua irrelevância jurídica para tributação, trata-se de hipótese integralmente alheia ao disposto no art.155, §2º, II da Constituição Federal. A transferência interestadual da mercadoria entre estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica equivale, portanto, a mera movimentação física. Na perspectiva apresentada, a movimentação interestadual em discussão, por ser meramente física, seria equivalente a trocar a mercadoria de prateleira, o que configura, indiscutivelmente, hipótese estranha ao ICMS (DOC. 88, p.13).”

 

Foi dado provimento ao recurso para esclarecer que o julgamento não representa a obliteração da regra de autonomia de estabelecimento, mas apenas seu afastamento para fins de tributação pelo ICMS nas meras transferências:

 

“(…) passo agora a análise da alegação do embargante no que tange a omissão acerca da extensão da declaração de inconstitucionalidade do princípio da autonomia dos estabelecimentos previsto no art. 11, §3º, II da Lei Complementar Federal nº 87/96.

O artigo declarado inconstitucional por esta Suprema Corte estabelece que ‘é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular’. A partir da leitura literal desse dispositivo, depreende-se a existência de autonomia das filiais perante sua matriz, de maneira a poderem, inclusive, assumir obrigações próprias.

A Corte, por sua vez, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do referido dispositivo para fins de cobrança do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de titularidade da mesma pessoa jurídica, não repercutindo em deveres instrumentais.”

 

Quanto à modulação, de início, o próprio relator já afirma que está a tratar daquela a que alude o art. 27 da Lei nº 9.868/99, não a do art. 927 do CPC:

 

“Por fim, quanto ao pedido da modulação dos efeitos temporais da decisão considero que presentes razões de segurança jurídica e interesse social (art.27, da Lei n.9.868/1999) que justifiquem eficácia pró-futuro da decisão preservando-se as operações praticadas e estruturas negociais concebidas pelos contribuintes, sobretudo, aqueles beneficiários de incentivos fiscais de ICMS no âmbito das operações interestaduais.

 

Ademais, tem-se ainda que considerar, conforme destacado pela própria unidade federativa embargante, o ‘risco de revisão de incontáveis operações de transferências realizadas e não contestadas no quinquênio que precede a prolação da decisão embargada’; o que ensejaria um indesejável cenário de macrolitigância fiscal.”

 

O relator, então, ratifica os argumentos do Estado embargante para justificar o acolhimento do pleito de modulação:

 

“A gravidade das consequências desse cenário evidenciam excepcional interesse social de pacificação pelo Poder Judiciário das relações jurídicas tributárias, que ensejam a excepcional aplicação do instituto da modulação do efeitos temporais da decisão para que os estados da federação empreendam esforços perante o Congresso Nacional e o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) para melhor conformação do esquadro legal do ICMS.”

 

Mas ora! O que o Governador do Estado de RN pediu, em seu EDs, foi a modulação da própria inconstitucionalidade da tributação das transferências que não eram alvo de contestação judicial, recordemos: “de forma a resguardar a validade de todas as operações realizadas e não contestadas judicialmente à data do julgamento da ADC (19/04/2021), determinando-se a produção de efeitos da pronúncia de nulidade apenas a partir do exercício financeiro subsequente à conclusão do julgamento“.

 

Ao dar provimento a esse pedido no Embargos, o Ministro relator trata ainda de outros pontos quando produz sua fundamentação, mas ao cabo acolhe a pretensão do Estado, nos seguintes termos:

 

“julgo procedentes os presentes embargos para modular os efeitos da decisão a fim de que tenha eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. Exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos.”

 

É verdade que o acolhimento não foi integral; foram ressalvadas as contestações judiciais (como pedido pelo RN) e as administrativas, mas apenas aquelas pendentes até a data da publicação da ata da decisão de mérito (a qual ocorreu em 29/04/2021).

Se a modulação foi realmente na declaração de inconstitucionalidade, como parece ser, como fica a situação de um contribuinte que só começou a discutir a não tributação de meras transferências depois dessa data (29/04/2021)? Está acobertado na modulação e não terá defesa sequer por meio do TRG 1099 (como parece ser a leitura apenas gramatical)?

Entendemos haver o risco real de, mantido o acórdão em seus exatos termos, as UFs promoverem, até 31/12/2023 e retroativamente aos últimos 5 (cinco) anos, a cobrança de ICMS pela simples transferência entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica, ignorando por completo o TRG 1099[14].

A decisão tomada nos autos do Mandado de Segurança nº 5043256-30.2022.8.13.0702[15], exemplificativamente, parece permitir que se materialize esse receio. Na visão ali estabelecida pelo Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Uberlândia/MG, a modulação na ADC 49 opera afastando a aplicação e o efeito vinculante do TRR 259 (STJ) e do TRG 1099 (STF).

Em nossa visão, não faz algum sentido admitir que um contribuinte sem discussão administrativa nem judicial pendente em abril de 2021 se veja obrigado a pagar débitos de ICMS por meras transferências.

Aceitar a juridicidade dessa cobrança abriria a porta a que todas as UFs pudessem lançar até o final de 2023 – e manter suas exigências iniciadas após abril de 2021 – relativamente a todos os valores que não cobravam antes a esse título, em respeito ao TRG 1099.

 

 

VI – Sugestão pontual de endereçamento na ADC 49: respeito ao TRG 1099

 

Entendemos que decisões como a mencionada acima devem ser usadas em novos EDs a serem interpostos perante o E. STF na ADC 49, requerendo-se uma decisão compatível com a tese firmada em 2020 no TRG 1099[16].

Empregando a técnica de interpretação estrutural e conforme, a modulação seria apenas aquela protetiva ao contribuinte (quando houve a tributação, haverá o crédito e será possível sua transferência) e se estende apenas para o dever dos estados na regulamentação dos créditos, vide o voto do Ministro Barroso, que acompanhou o relator:

 

“acompanho o entendimento do Min. Edson Fachin para atribuir eficácia pro futuro à decisão de mérito, a contar do início do exercício financeiro de 2024, dado que o julgamento no presente plenário virtual adentrou o exercício financeiro de 2023. Note-se que esse marco temporal visa a conferir prazo para que os Estados regulamentem a transferência de créditos entre estabelecimentos de mesmo titular, em atenção à não cumulatividade que rege o ICMS, nos termos do art. 155, § 2º, I, da CF/1988, tal como ocorria na sistemática anterior.”

 

Constituir as UFs em uma mora, como apontado acima, parece ter como premissa a ratificação da inexigibilidade de tributação de meras transferências por ICMS, mas a situação não está suficientemente clara para UFs, contribuintes e demais órgãos do Judiciário.

Que haja oferta de recurso cuja apreciação permita ao STF assim esclarecer, restringindo com clareza o limite da modulação, circunstância em que os riscos ficam afastados e a “transferência de créditos” se daria naturalmente entre as filiais, acompanhando o fluxo físico da mercadoria.

 

 

VII – Conclusão

 

Diante de todo o exposto, se nota, claramente, que estamos frente ao uso ainda pouco (auto)regulado de poder por parte do Supremo Tribunal Federal, o que pode ser especialmente preocupante, considerando que o Poder da Suprema Corte é apto a vincular não só demais tribunais, mas pode os estimular outras Cortes a um ainda maior ativismo judicial, interferindo também nas decisões de outros poderes, colocando em xeque, portanto, o maior dos poderes: o do Estado Democrático de Direito a que alude a Constituição Federal de 1988.

O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

O STF, há alguns anos vem desenhando seu próprio ordenamento jurídico, se colocando à frente dos demais poderes da nossa República – o que não é necessariamente bom ou mau, mas mera decorrência de que o poder não admite vácuos.

Contudo, no que diz respeito ao caso debatido neste artigo, podemos concluir que o poder que o STF reconheceu a si nos Temas 881 e 885 traz consigo um dever diferenciado de atuação retilínea e uniforme[17], um ônus majorado especialmente na contenção de insegurança jurídica quando da alteração de sua Jurisprudência ou daquela firmada pelo STJ, quando vinculantes.

Afinal, o Código de Processo Civil, na esteira da “constitucionalização” da legislação ordinária, adotou expressamente a teoria de Ronald Dworkin no seu art. 926. A integridade do direito, como princípio, requer do Poder Judiciário, mormente em controle de constitucionalidade pela Corte vocacionada para tal, que as decisões sejam coerentes na perspectiva do romance em cadeia[18] idealizado por Dworkin.

A teoria dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade precisa ser revisitada para que, a par do aparente abandono da teoria da nulidade das leis inconstitucionais, a modulação de efeitos não abra caminho para, em nome da segurança jurídica, autorizar abusos por parte do Estado (“inconstitucionalidades úteis”[19]).

Lembremos sempre de Ângelo, personagem de Shakespeare na peça “Medida por Medida”[20] (no original, “Measure for Measure[21]), a fim de que a autoridade seja permanentemente controlada por critérios públicos e, como ensina John Rawls, escolhas racionais[22].

 

[1] https://tributarioemjogo.com.br/uma-visao-concorrencial-sobre-os-temas-de-repercussao-geral-no-881-e-885/

[2] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5257024

[3] https://asisprojetos.com.br/spednews/adc-49-o-que-esta-em-jogo/

[4] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2023/02/08/stf-decide-por-6-a-5-que-nao-ha-modulacao-de-efeitos-na-quebra-da-coisa-julgada.htm

[5] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4930112

[6] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4945134

[7] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=502140&ori=1

[8] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=881

[9] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=885

[10] https://tributarioemjogo.com.br/modulacao-e-temas-de-repercussao-geral-no-881-e-885-um-meio-termo-pela-estreita-via-de-embargos-de-declaracao/

[11] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=1099

[12] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/adc-49-dos-limoes-a-limonada-02102021

[13] https://www.ibet.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Osvaldo-Santos-de-Carvalho-e-Jose-Mauro-de-Oliveira-Junior.pdf

[14] https://www.conjur.com.br/2023-mai-11/perobae-gandara-onde-vamos-tributamos

[15] https://pje-consulta-publica.tjmg.jus.br/pje/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam?ca=926c928de0c51deb3 ef3fe0269032e5d5673fabd47590f8a

[16] https://www.conjur.com.br/2023-mai-02/opiniao-julgamento-adc-49rn-modulacao-efeitos

[17] https://www.conjur.com.br/2022-jan-06/opiniao-boate-kiss-temas-tributarios-quem-guarda-guardiao

[18] https://periodicos.unir.br/index.php/iurisnovarum/article/view/5965

[19] https://www.conjur.com.br/2023-abr-27/interesse-publico-cairu-inconstitucionalidade-incentivada-materia-tributaria

[20] https://www.professorjailton.com.br/novo/biblioteca/medida_por_medida.pdf

[21] https://www.folger.edu/explore/shakespeares-works/measure-for-measure

[22] https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/32727/19743/

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