A carta dos ultrarricos em Davos: tributação, confiança, vontade e capacidade contributiva

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

Rodrigo Tomiello da Silva

José Guilherme Costa

 

 

Embora seja um ponto que passa longe de ser novidade[1], neste exato momento está em amplo debate a questão relativa à atualização da tabela do Imposto de Renda para Pessoas Físicas (IRPF)[2], situação que não ocorre desde 2015 e faz com que a defasagem, desde 1996, seja de aproximadamente 135%[3].

Existe toda uma discussão técnica, na qual não adentraremos em demasia, acerca da viabilidade jurídica de se proceder imediatamente ao ajuste da tabela. Houve uma leitura, que consideramos incorreta, acerca da necessidade de se observar a regra da anterioridade anual[4].

Nossa intenção aqui é apenas usar este momento, que conta também com uma iniciativa de pessoas abastadas perante líderes mundiais[5], como pano de fundo para duas grandes discussões sobre cidadania fiscal[6] no Brasil.

A primeira delas explora o mau uso que os governos fazem dos valores arrecadados junto aos contribuintes, seja por desonestidade ou incompetência – vertente, aliás, que serve de propulsor à ideia[7]/campanha[8] de que “tributo é roubo” (especialmente, neste Brasil de 2023 ainda tão dividido, para aqueles cujos candidatos foram vencido nas urnas).

 

Tabela do Imposto de Renda em Vigor

 

Acerca desse ponto, enxergamos mérito na necessidade de criação de mecanismos que garantam honestidade, eficiência e conexão entre arrecadação e promoção dos valores constitucionalmente previstos[9] – já que para isso a sociedade criou o Estado –, mas rechaçamos com veemência a noção de que o tributo em si é um equívoco ou um assalto à sociedade[10].

A outra grande discussão histórica, que será nosso ponto de estudo nesta oportunidade, parte da chamada injustiça social do sistema[11]; da observação empírica segundo a qual pobres pagam impostos demais[12] e ricos, com seus planejamentos e benefícios fiscais, contribuem menos do que deveriam[13].

Não nos parece possível, no atual ambiente constitucional (art. 3º, CRFB/88), nenhum questionamento legítimo acerca da natureza do tributo como elemento de que se deve valer o Estado para distribuir oportunidades e renda.

O tributo deve ser um promotor[14], e não um ofensor[15], da redução das desigualdades e otimização da solidariedade social. A bússola para nos orientar na justa tributação deve ter como agulha a medição da efetiva capacidade contributiva[16] do sujeito passivo.

A discussão passa longe de ser simples[17], mas em 2021, diante de campanhas e escrutínio sobre a tributação dos mais ricos[18], empreendemos um estudo sintético[19] que nos indicou não ser o IGF – Imposto sobre grandes fortunas –, ao menos no Brasil atual, o caminho mais sustentável para tal fim.

Recentemente, essa temática voltou à pauta quando cerca de 200 milionários e bilionários, entre eles nenhum brasileiro[20], apresentaram uma carta aberta, que foi entregue a líderes políticos durante o Fórum Econômico Mundial, que ocorre em Davos, na Suíça[21]. A mensagem foi clara como a luz do dia:

 

“Agora é a hora de enfrentar a riqueza extrema; agora é a hora de tributar os ultra-ricos.

Há um limite para o estresse que qualquer sociedade pode suportar, apenas algumas vezes mães e pais assistirão seus filhos passarem fome enquanto os ultra-ricos contemplam sua riqueza crescente. O custo da ação é muito mais barato do que o custo da inação – é hora de fazer o trabalho.

Taxe os ultra-ricos e faça isso agora. É economia simples e de bom senso. É um investimento no nosso bem comum e num futuro melhor que todos merecemos e, como milionários, queremos fazer esse investimento.

O que – ou quem – está impedindo você?”

 

Pensemos no seguinte: quando os ultrarricos pedem para ser tributados a mais, eles estão confiando em que o ente tributante fará a melhor gestão desses recursos financeiros, em benefício daqueles mais necessitados.

Existe confiança plena de que o ente tributante cumprirá seu papel e mais: de que saberá gerir essas receitas melhor do que os próprios ultrarricos fariam na criação e/ou no patrocínio de organizações assistenciais da sociedade civil.

É esse o nível de confiança que fez os signatários da carta produzirem-na; eles e seus governos estão em um nível de maturidade relacional tamanho que se percebe o grau mais elevado de cidadania fiscal: existe um vínculo, real e experimentado, entre o dever de uma gestão Estatal eficiente e proba e o dever de pagar tributos.

Mas e a mencionada ausência de brasileiros entre os signatários… será algo acidental ou sintomático?

A desconfiança no Estado Brasileiro (retroalimentada pela corrupção[22] e pela impunidade[23], embora haja medidas muito interessantes visando à quebra desses vícios[24]), que já citamos como uma das eminentes discussões acerca do papel da tributação (entre outras funções Estatais), poderia apontar na direção de que precisamos otimizar alguns aspectos na atuação do Estado se queremos gerar nos nossos ultrarricos uma disposição similar à noticiada.

Ainda que tenhamos nossas críticas a algumas medidas do Estado tributante[25] – especialmente aquelas que não passam pelos devidos debates e nascem em gabinetes pela assinatura de apenas uma ou poucas autoridades públicas, ou aquelas que carregam consigo fundamentos absolutamente desprovidos de efetiva comprovação – reconhecemos avanços significativos na aproximação entre fisco e contribuintes[26], especialmente guiada pelos esforços e pela vanguarda técnica da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN)[27].

Apenas a título de exemplo recente e inibidor, acreditamos que medidas como a Emenda Constitucional nº 123 (denominada durante sua votação de “PEC Kamikaze”[28]), abrindo exceção à necessidade de se observarem os deveres orçamentários previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, Lei Complementar nº 101/2000), não contribuem para a geração de confiança nos contribuintes.

Acreditamos que a confiança se inicia com a simplificação das relações tributárias, a informação a todas as pessoas, desde a educação fundamental, acerca do papel do tributo e da gestão das receitas públicas, a evidência de tributação conforme a capacidade contributiva e a redução máxima da impunidade (punição severa dos sonegadores de tributos e, em campos político, administrativo, penal e civil, dos atos de corrupção ou gestão indevida da máquina pública).

Retomando a nossa crítica de outrora contra o IGF e adaptando nossa visão ao atual momento de sociedade e Estado Brasileiros, com discussões aparentemente mais concretas entre Executivo e parlamentares[29] sobre uma reforma tributária[30] e fiscal[31], ainda que fatiada[32], entendemos que ainda é necessário gerar laços mais firmes de confiança para garantir que um IGF ajudaria mais do que atrapalharia em médio e longo prazos.

Enquanto não superarmos o deficit de confiança recíproca, é possível que não resolvamos de modo sustentável a questão da justiça fiscal – e vice versa. No atual enquadramento, pois, enxergamos como viáveis, para aproximarmo-nos de alguma justiça fiscal, os caminhos de, paralelamente:

– simplificação das obrigações tributárias[33];

– inclusão, no programa educacional de ensinos fundamental e médio, de disciplina sobre a relação constitucional entre a sociedade e o Estado;

– aprovação de projeto de lei para qualificação dos sonegadores tributários contumazes[34];

– responsabilização pessoal de administradores de empresas sonegadoras contumazes[35] e de agentes públicos quando do descumprimento das normas de controle orçamentário;

– incremento da seletividade e maior tributação sobre consumo de artigos de luxo (via ICMS/IVA ou imposto seletivo)[36];

– instituição de imposto anual pela propriedade de veículos móveis de luxo (helicópteros, iates, aviões)[37]; e

– promover os ajustes imediatos e, doravante, indexar a evolução da tabela de imposto de renda de pessoas físicas ao índice oficial de inflação nacional[38].

 

Nenhuma dessas ideias é “fora da caixa”, mas não foram os momentos de pirotecnia e de soluções deus ex machina que construíram nossas mais sólidas culturas e valores; foi o trabalho sério e sustentável na criação de confiança entre sociedade e Estado.

Que consigamos dar esses primeiros passos na jornada de, um dia, ser um orgulho para todos a participação no financiamento de um Estado no qual confiemos como nosso representante. Nesse dia, as instituições serão mais sólidas e independerão de circunstâncias apenas políticas: estaremos todos juntos em uma união mais perfeita[39] e não serão mais necessárias cartas abertas em Davos.

[1] https://www.camara.leg.br/noticias/917691-proposta-do-novo-governo-de-reajustar-tabela-do-ir-ja-e-discutida-na-camara/

[2] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/orientacao-tributaria/tributos/irpf-imposto-de-renda-pessoa-fisica#calculo_mensal_IRPF

[3] https://www.estadao.com.br/economia/governo-poderia-corrigir-tabela-ir-entenda-npre/

[4] https://www.seudinheiro.com/2023/economia/lula-nao-pode-corrigir-tabela-do-ir-ainda-neste-ano-julw/

[5] https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/em-carta-divulgada-em-davos-milionarios-pedem-parcela-mais-justa-de-impostos/

[6] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/cidadania-fiscal/o-que-e-cidadania-fiscal

[7] https://direitoeliberdade.jusbrasil.com.br/artigos/131353532/por-que-imposto-e-um-tipo-de-roubo

[8] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2022/09/candidato-do-novo-diz-que-imposto-e-roubo-e-sonegacao-e-legitima-defesa.shtml

[9] https://www.migalhas.com.br/depeso/356399/a-funcao-extrafiscal-dos-tributos-e-a-atividade-regulatoria-do-estado

[10] https://tributarioemjogo.com.br/tributar-nao-e-crime-sonegar-sim/

[11] https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1240:reportagens-materias&Itemid=39

[12] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/05/03/impostos-pesam-mais-para-os-pobres-e-reformas-deveriam-ampliar-taxacao-de-super-ricos-aponta-estudo.ghtml

[13] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54006822

[14] https://cee.fiocruz.br/?q=Reforma-Tributaria-Solidaria-no-combate-as-desigualdades

[15] https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/05/por-que-a-formula-de-cobranca-de-impostos-do-brasil-piora-a-desigualdade-social

[16] DUTRA, Micaela Dominguez. Capacidade Contributiva – Análise dos Direitos Humanos e Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2010.

[17] https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/01/16/o-que-dizem-dois-lados-do-debate-sobre-cobrar-mais-impostos-dos-mais-ricos.htm

[18] https://www.brasildefato.com.br/2021/03/16/distribuicao-de-renda-deve-vir-tambem-em-tributacao-de-super-ricos-diz-pesquisadora

[19] https://www.conjur.com.br/2021-set-10/opiniao-robin-hood-professor-nash-loira-bar

[20] https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/01/18/ricos-pedem-para-pagar-mais-impostos-iniciativa-nao-tem-brasileiros.htm

[21] https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/01/19/quem-sao-os-super-ricos-que-defendem-em-davos-a-taxacao-sobre-riqueza.ghtml

[22] https://ibpt.com.br/corrupcao-nao-custa-so-dinheiro-os-impactos-dos-desvios-para-o-brasil/
https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/impactos-da-corrupcao-no-brasil-alem-do-dinheiro/

[23] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/02/6ab66f9a7c1f5c99878f04a46f8279e4.pdf

[24] https://dezmedidas.mpf.mp.br/campanha/produtos/pdf/10_MEDIDAS_ONLINE.pdf

https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/confia

[25] https://gdt-rio.com.br/parecer-cosit-10-guerra-do-seculo-mais-um-episodio/

[26] https://www.migalhas.com.br/depeso/327341/transacao-tributaria—meritos–desafios-e-oportunidades

[27] https://www.gov.br/pgfn/pt-br/servicos/orientacoes-contribuintes/acordo-de-transacao

PGFN amplia utilização de prejuízo fiscal na transação tributária

[28] https://g1.globo.com/politica/ao-vivo/pec-kamikaze-votacao-na-camara.ghtml

[29] https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/01/01/reforma-tributria-ser-prioridade-de-lula-no-congresso-diz-futuro-lder-do-governo-na-cmara.ghtml

[30] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/01/governo-costura-apoio-para-reforma-tributaria-no-congresso.shtml

[31] https://www.infomoney.com.br/politica/simone-tebet-plano-tera-ainda-reforma-tributaria-e-regra-fiscal/

[32] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2023/01/18/lula-promete-reforma-tributaria-do-consumo-no-1-semestre-e-garante-mudanca-no-ir.htm

[33] https://www.camara.leg.br/noticias/928845-camara-aprova-projeto-que-cria-estatuto-de-simplificacao-de-obrigacoes-tributarias/

[34] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/12/28/projeto-regulamenta-identificacao-e-controle-de-devedores-contumazes

[35] https://institutocombustivellegal.org.br/estudo-da-fgv-revela-sonegacao-de-r14-bilhoes-ao-ano-no-setor-de-combustiveis-pesquisador-destaca-metodo-utilizado-e-alerta-para-combate-ao-devedor-contumaz/

[36] https://www.infomoney.com.br/consumo/os-10-produtos-em-que-o-brasileiro-mais-paga-imposto/

[37] http://www.sindifiscal-es.org.br/noticias/749/se-cobrado-ipva-para-helicopteros-barcos-e-jatos-renderia-r-46-bilhoes

[38] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/21/projetos-evitam-que-quem-ganha-menos-passe-a-pagar-ir-por-defasagem-da-tabela

[39] https://www.youtube.com/watch?v=zrp-v2tHaDo

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