Uma visão concorrencial sobre os temas de repercussão geral nº 881 e 885

José Guilherme Fontes de Azevedo Costa

 

O Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão presencial finalizada em 08/02/2022, decidiu – por unanimidade no mérito e por maioria apertada na não modulação temporal[1] – os Recursos Extraordinários 949.297/CE[2] e 955.227/BA[3], fixando as Teses 881[4] e 885[5] da Repercussão Geral[6]:

 

1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

 

  1. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”

 

Foi noticiada a “quebra da coisa julgada”[7] e não foram poucos os juristas que vaticinaram o fim do Estado de Direito e o desrespeito a um dos institutos mais sagrados no rol de direitos e garantias fundamentais do art. 5º[8] da Constituição da República (CRFB).

Eis, então, nosso tardio cartão de visita: não enxergamos absolutamente nenhuma “quebra” da coisa julgada e nenhuma violação a direito ou garantia fundamental quando analisamos o decidido pelo STF nos TRGs 881 e 885.

De início, um argumento que pode ser visto como inconveniente, mas necessário: não há, em um Estado Constitucional, direitos absolutos. A coisa julgada, prevista no art. 5º, XXXVI, até sob o enfoque topográfico deve ser lida sempre à luz do art. 5º, caput, que garante a isonomia – esta também, combinemos desde já, tão limitável quanto a liberdade ou qualquer outro direito humano fundamental de primeira dimensão.

Dizer que um direito não é absoluto não significa afirmar que ele não é digno de proteção ou que não se deve seguir uma prudente liturgia técnica para seu legítimo afastamento em dado conflito normativo.

Ocorre que, em nosso ver, tampouco estamos aqui diante de um verdadeiro conflito entre normas constitucionais – isonomia vs. coisa julgada. Entendemos, na verdade, que o fenômeno em debate diz tão somente com a consagração da igualdade tributária aliada à erosão dos elementos que justificam a continuidade da eficácia da coisa julgada quando ela se projeta sobre relações jurídicas continuativas entre as partes.

 

Recorramos a mais dois testes simples, para mostrarmos aonde queremos chegar:

(i) suponha que um dado contribuinte de IPTU (tributo municipal de cobrança anual), diante de cobranças indevidas do município (que considerava uma área construída de 100 m², maior que a real, então de 50 m²), tenha recorrido à justiça e vencido, com trânsito em julgado, para determinar ao município que passasse a cobrar o IPTU apenas sobre a área efetivamente construída, de 50 m².

Esse contribuinte, quando posteriormente aumenta sua edificação para 130 m², obviamente perderá o direito de recolher IPTU sobre a área de apenas 50 m². E isso não significa quebra da coisa julgada; representa apenas que uma alteração fática que, quando substancial à regra matriz tributária, modifica nuclearmente a relação jurídica básica entre o contribuinte e o município, que serviu de amparo à formação da coisa julgada original.

 

(ii) imagine agora que um contribuinte de ICMS tenha recorrido ao judiciário para ver estendida a si uma norma de isenção que não era clara quanto aos seus limites, e obteve sentença favorável transitada em julgado, obrigando portanto o Estado a não proceder à tributação de ICMS nas operações em questão.

Há alguma dúvida de que, se toda a norma de isenção for revogada, o referido contribuinte precisará – observadas naturalmente as regras constitucionais de anterioridade – voltar a pagar o ICMS em suas operações? Mais uma vez, aqui não existe nenhuma quebra da coisa julgada firmada em seu processo original. O que ocorreu foi a queda de um pressuposto de direito no qual se escorava a manutenção da eficácia da decisão transitada em julgado.

 

Então, a continuidade da eficácia da coisa julgada, projetada sobre uma relação jurídica, depende de essa relação jurídica seguir tendo os mesmos elementos: sujeitos, objeto e vínculo jurídico. Se um deles mudar substancialmente, a relação se transforma, deixa de ser exatamente aquela que foi apreciada pelo Judiciário e agasalhada pela coisa julgada.

Aqui está, pois, o cerne de nossa compreensão: temos que a coisa julgada, quando se projeta para o futuro e visa a reger relações jurídicas continuadas entre as partes de um processo, possui eficácia rebus sic stantibus. Enquanto essa for a relação, esse será o efeito da decisão.

A adaptação da coisa julgada ao direito e aos fatos de seu tempo é que lhe permite a projeção de eficácia. Já vimos o poder do novo direito e o quão natural é aceitar seu poder de erodir os efeitos futuros da coisa julgada.

Falta-nos então analisar, no ordenamento brasileiro, situações que podem gerar um “novo direito”, além dos atos naturalmente legiferantes, frutos da atividade típica do Poder Legislativo e atípica dos Poderes Executivo ou Judiciário.

Segundo o Código de Processo Civil de 2015, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao decidir um tema repetitivo, cria uma jurisprudência vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário, exceto ele mesmo e o STF.

O STF, ao julgar determinada questão afetando-a especificamente como tese de repercussão geral, edifica um preceito jurídico vinculante para todos os demais órgãos do Poder Judiciário (arts. 926 a 928 do Código de Processo Civil de 2015 – CPC).

O STF, desde a Lei nº 11.417/2006 e autorizado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, pode editar súmulas vinculantes, demonstrativas da reiteração da sua jurisprudência (art. 103-A, da CRFB/88).

Ademais, desde a Carta original de 1988, quando o STF julga instrumentos deflagratórios de controle abstrato de constitucionalidade, gera-se um efeito igualmente vinculante e para todos os destinatários da norma, exceto o poder legislativo em sua típica função legiferante (arts. 102, §2º e 103 da CRFB/88).

Existe pois um largo espaço normativo constitucional em que a jurisprudência, especialmente quando cumprido o ônus de superação à dificuldade contramajoritária, é uma legítima efetiva fonte do Direito. Isso pode ocorrer tanto em processos objetivos cuja única discussão é a própria adequação do ato frente ao texto constitucional, como Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (ADIs), Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPFs), quanto em processos subjetivos, que discutem uma lide entre partes e que têm como pano de fundo uma questão constitucional ou legal relevante ao ponto de ser afetada como tema de repercussão geral (TRG, no STF) ou repetitivo (TRR, no STJ).

Nos moldes nacionais atualmente vigentes, a geração de precedentes judiciais vinculantes por Cortes Superiores, equipara-se à edição de um ato normativo propriamente dito, motivo pelo qual, por exemplo, os arts. 20 e seguintes do Decreto-Lei nº 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB), incluídos pela Lei nº 13.655/2018, demandam do Judiciário um estudo de consequencialismo e devida fundamentação[9].

Se o Judiciário, em dadas situações, cria, reafirma ou altera o direito tributário preexistente de modo vinculante e para todos, é forçoso admitir que diante desses pronunciamentos ocorre uma alteração linear e uniforme, ainda que de mera ratificação, no vínculo jurídico entre todos os contribuintes e entes tributantes.

É essa alteração no vínculo jurídico que torna ineficaz, para os eventos posteriores e respeitadas as regras de anterioridade, a aplicação da coisa julgada anteriormente firmada.

 

Explicamos, recorrendo a um exemplo: dado contribuinte demandara o Fisco desejando ver declarada inconstitucional a cobrança de um tributo, pedindo tutela jurisdicional para recuperação dos valores pagos a maior no passado e para se ver futuramente desobrigado ao pagamento da exação fiscal, e tinha em seu favor uma decisão sobre a qual incidiam os efeitos da coisa julgada material que lhe julgara procedentes os pedidos.

A coisa julgada declarada nesta decisão possui eficácia temporal dupla: garantiu ao contribuinte a total recuperação dos valores recolhidos a maior até sua prolação e também lhe declarou que assim deveria ser no futuro enquanto assim se mantivesse a relação jurídico-tributária como era no momento do trânsito.

Se mudam substancialmente a lei (vamos supor, mudam-se substancialmente fato gerador ou base de cálculo), a condição do contribuinte (por evolução de objeto ou de receita, por exemplo, deixou de poder se enquadrar em um regime tributário específico) ou qualquer outro elemento que foi considerado como essencial na prolação da decisão judicial outrora transitada em julgado, parece-nos legítimo entender que o “novo Direito” deve ser aplicado automaticamente a partir de sua instituição, mas não pode retroagir para afetar a recuperação de valores passados, garantida pela coisa julgada.

Alterada substancialmente a base jurídica da coisa julgada pela jurisprudência tributária, em nosso exemplo, o contribuinte perde a proteção da coisa julgada que detinha e, observadas todas as regras de anterioridade, deverá estar igualmente sujeito a essa nova incidência fiscal, na mesma medida em que todos os demais contribuintes em sua condição natural.

Quando avaliamos as teses firmadas pelo STF, encontramos todos os elementos que tentamos apresentar aqui: a Corte declara que as decisões em controle difuso/incidental anteriores à repercussão geral não geram impacto automático nas bases das coisas julgadas pretéritas e que o efeito automático, quando presente, deve ser prospectivo e respeitar as regras de anterioridade aplicadas ao tributo em questão.

Ao fazê-lo, consagrou a isonomia fiscal tão (justamente) reclamada pelo empresariado brasileiro e afirmou-se, quando prolator de decisões vinculantes – controle concentrado e julgamentos em repercussão geral – como detentor da palavra final sobre o que é o Direito.

Fica a torcida de que, ao decidir os Temas 881 e 885, o Supremo de hoje tenha firmado um compromisso com o Supremo de amanhã; referimo-nos aqui a um pacto de autorrestrição e de moderação na revisão jurisprudencial, afinal o STF não vincula a si mesmo, “para não se engessar”.

Afinal, se o que o STF diz passa a ser “lei”, e interfere imediatamente na esfera de direitos da coletividade, o exercício da jurisdição definitiva precisa ser cada vez mais colegiado, responsável e cauteloso, contando com o máximo componente democrático possível.

Nesse contexto, aliás, quando se discute a questão da modulação temporal em casos tão extremos e cujos julgamentos demoraram tanto, o STF poderá ser chamado a recordar a tempo e modo que a diferença entre remédios e venenos pode ser… apenas a dose.

[1] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2023/02/08/stf-decide-por-6-a-5-que-nao-ha-modulacao-de-efeitos-na-quebra-da-coisa-julgada.htm

[2] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4930112

[3] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4945134

[4] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=881

[5] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=885

[6] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=502140&ori=1

[7] https://www.migalhas.com.br/quentes/381272/stf-nao-ha-modulacao-de-efeitos-em-quebra-da-coisa-julgada-tributaria

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/02/quebra-de-decisao-tributaria-vale-sem-necessidade-de-acao-rescisoria-decide-stf.shtml

[8]Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

[9] https://www.conjur.com.br/2018-mai-18/opiniao-lindb-quadrantes-consequencialismo-juridico

https://www.migalhas.com.br/depeso/303289/o-stj-e-os-desafios-na-interpretacao-da-nova-lindb

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