Contratos de licença de direitos de comercialização de software: disse o STF algo sobre isso?

Tatiana Junger

 

Na taxonomia básica, objetos são categorizados, do mais abrangente para o mais restrito, em reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie. Dentro desse raciocínio, quando eu menciono um gênero, englobo na minha referência todas as espécies subjacentes, mas, quando eu menciono uma espécie, englobo na minha referência apenas uma parte dos objetos contemplados naquele gênero.

Contudo, em certas ocasiões, a linguagem pretere a taxonomia científica. É que, comumente, nós utilizamos uma palavra de natureza específica para designar um objeto de natureza genérica. Essa é uma das manifestações possíveis da figura de linguagem a que é dada o nome de metonímia, aplicada quando há o emprego de um termo impreciso no lugar do termo preciso, em razão da relação de semelhança ou associação entre eles.

Pois bem. Ao julgar em conjunto as ADI 1.945 e 5.659, em 2021, cuja controvérsia dizia respeito ao conflito de competências entre o ICMS e o ISS na contratação de licenças de software, o STF confirmou a incidência do segundo, partindo do enquadramento de toda e qualquer operação de licença de uso de software como prestação de serviço.

Sobre isso, muito foi dito sobre a nova abrangência da tese de incidência do ISS, quase que afirmando uma abrangência absoluta. Mas um olhar cauteloso acusa que não é bem assim.

Aí que vem o ponto: os julgados abrangeram toda e qualquer operação de licença de uso de software. Por essa referência, vale o endereçamento à Lei 9.609/98, chamada Lei do Software, que prevê no seu artigo 9º a licença de uso e, em sequência, no seu artigo 10, a licença de direitos de comercialização.

Dessa maneira, o diploma parece atribuir natureza genérica às licenças de software, dentro da qual coabitam as mencionadas duas espécies. O nome do Capítulo conduz a essa conclusão, ao se referir a “contratos de licença de uso, de comercialização e de transferência de tecnologia”.

Nesse contexto, o contrato de licença de uso é aquele em que a licença permite a fruição da utilidade daquela tecnologia, enquanto o contrato de licença de direitos de comercialização tem por objetivo permitir que o desenvolvedor, que detém originalmente o direito de exploração, transfira ao licenciatário a prerrogativa de comercializar aquele software, coisa que é diferente de prover fruição de utilidade tecnológica.

É interessante mencionar que a RFB já afirmou em obiter dictum de ato vinculante, a Solução de Consulta COSIT 18/17, que a licença de uso e a licença de direitos de comercialização de software são figuras distintas, de acordo com o tratamento normativo conferido pela Lei do Software.

Diante disso, precisamos nos perguntar sobre a linguagem empregada pelo STF e o que de fato foi abrangido pelos julgados em questão. Ao falar em licenças de uso, ele validou a incidência do ISS apenas para as licenças contratadas na forma do artigo 9º da Lei 9.609/98? Ou será que a Corte Constitucional foi metonímica, ao tratar de licenças de uso para se referir às licenças de software em gênero, sejam aquelas do artigo 9º ou aquelas do artigo 10?

Essa resposta é relevante.

Se entendemos que a Corte foi metonímica, então ela validou a incidência do ISS para toda e qualquer licença de software, seja ela uma licença de uso ou uma licença de direitos de comercialização, enquadrando-os, todos, no item 1.05 da lista de serviços anexa à LC 116/03, aplicável para “licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação”.

É interessante que, se assim o fez, a Corte operou inclusive uma interpretação conforme com adição de texto ao referido dispositivo, que, apesar de mencionar textualmente tão somente “direito de uso”, também seria adequado para as licenças de direitos de comercialização.

Por outro lado, se entendemos que a Corte não foi – ou não pode ter sido – metonímica, então ela validou a incidência do ISS apenas sobre o licenciamento de uso de software, enquadrando-o no supracitado item 1.05.

Sobre isso, é relevante ponderar que os Ministros, ao produzirem seus votos, têm responsabilidade sobre a linguagem que empregam. Eles não têm liberdade para usar termos técnicos com acepções excêntricas ou para utilizar figuras de linguagem com a mesma naturalidade que um orador coloquial. A linguagem jurídica, sobretudo quando amparada em texto normativo, deve ter deferência às categorizações impostas. Sob essa perspectiva, não se poderia admitir que o STF tenha sido metonímico.

Outra questão é que o julgamento conjunto foi de duas ações diretas de inconstitucionalidade, direcionadas às leis em tese, que não traziam nos seus textos esse grau de detalhe que a Lei do Software oferece. Ademais, ao confirmar a tese no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, ao julgar o RE 688.223, afetado à sistemática da repercussão geral sob o tema 590, ele se debruçou sobre caso concreto em que a materialidade tributável era a remuneração pela fruição da utilidade tecnológica, e não por direitos de exploração.

Isso significa que, pelo recorte fático e normativo submetido ao STF, ele simplesmente não precisou se preocupar em analisar o tratamento fiscal conferido às licenças de direitos de comercialização, como de fato não o fez. Por esse motivo, podemos concluir que esse recorte fático e normativo também esclarece que a Corte não foi metonímica, já que ela deve deferência à matéria efetivamente submetida à sua apreciação, salvo se fizer uma construção expressa e motivada, o que não foi o caso.

Agora, ao afirmarmos que a tese fixada pelo STF não atinge as licenças de direitos de comercialização, será que isso significa que elas não são tributáveis pelo ISS?

Se admitíssemos que não são, então teríamos uma hipótese de incidência do ICMS ou uma hipótese de não incidência.

O fato de o STF dizer que A é tributado por ISS não significa que B não o possa ser. Na situação analisada, a licença de direitos de exploração, assim como a licença de uso, provê uma utilidade – não aquela proporcionada pela tecnologia do software, mas a relacionada com a possibilidade de explorá-la no mercado. Dessa maneira, epistemologicamente, parece aproximar-se da noção de prestação de serviço e afastar-se, na mesma proporção, da noção de venda.

Isso tem dois significados: (i) não pode ser cogitada a incidência de ICMS e (ii) por haver uma aproximação epistemológica do conceito de serviço, a questão de ser ou não ser uma hipótese de não incidência acaba dependendo da possibilidade de enquadramento em algum item da lista de serviços.

Nesse cenário, podemos afastar o item 1.05 por ele tratar, especificamente, de licenças de uso, mas é possível ventilar a utilização do item 10.02, aplicável para “agenciamento, corretagem ou intermediação de (…) contratos quaisquer” ou mesmo do item 10.09, a depender dos termos contratos, aplicável para “representação de qualquer natureza, inclusive comercial”.

O enquadramento faz toda a diferença, porque os Municípios podem estabelecer alíquotas diferentes para os itens, o que significa que enquadrar a operação em um determinado item em detrimento de outro(s) é algo que pode significar diminuição ou aumento de carga tributária. A legislação de São Paulo, por exemplo, prevê alíquota de 2,9% para o item 1.05 e 5% para 10.02 ou 10.09. O Rio de Janeiro prevê 2% para o item 1.05 e 5% para 10.02 ou 10.09. Ainda, é preciso lembrar que os Municípios podem alterar tais alíquotas, exercendo sua competência tributária com atenção aos limites estabelecidos pelo pacto constitucional.

A conclusão de que o STF não foi metonímico acaba conduzindo a um cenário, portanto, em que o custo tributário da licença de direitos de comercialização é potencialmente maior, considerando uma leitura parcial do contexto normativo.

Muito embora na lógica binária da tradicional relação fisco-contribuinte isso possa parecer ruim, é preciso estar atento às interpretações razoáveis e, na medida do possível, elaborar bons planejamentos tributários, que, no caso das operações em análise, poderiam se beneficiar bastante de um cuidado especial com os contratos pactuados, especialmente no que concerne à definição dos seus objetos.

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