Solução de Consulta 36/23: relampejo ou trovoada na tributação federal das operações com licenças de software?

Tatiana Junger

 

Quando pequeninas partículas de gelo e de água suspensas nas nuvens colidem e atritam entre si, elas adquirem diferentes cargas elétricas que se acumulam em dois polos, criando um grande potencial energético cuja descarga é conhecida por nós como o raio.

 

Esse fenômeno da natureza produz duas consequências sensíveis aos nossos sentidos: o relâmpago, manifesto em luz, e o trovão, manifesto em som. O primeiro viaja no espaço a uma velocidade mais rápida que o segundo, motivo pelo qual podemos dizer que o relampejo é o aviso da trovoada.

 

Há pouco, em 07 de fevereiro de 2023, foi publicada pela RFB a Solução de Consulta COSIT 36/23, cuja recepção tem sido acompanhada por diversas elucubrações sobre seu alcance, ao veicular novos parâmetros para a apuração dos tributos federais circunstanciados às operações com licenças de softwares padronizados ou customizáveis em pequena extensão.

 

Mas seria ela representativa de um relâmpago, que avisa, ou de um trovão, que estronda?

 

Pois bem. O citado pronunciamento federal estabeleceu, em relação às operações com tal objeto, para os contribuintes que apuram IRPJ e CSLL pela sistemática do lucro presumido, a obrigação de aplicar os percentuais de presunção de 32% para ambos os tributos.

 

Dessa maneira, superou expressamente orientações anteriores, que referendavam a aplicação de 8% e 12% na apuração das bases tributáveis, respectivamente, pelo IRPJ e pela CSLL, na venda de softwares padronizados (Solução de Consulta COSIT 123/14) e mesmo de softwares com baixo grau de customização (Solução de Consulta COSIT 269/19).

 

Essa mudança de entendimento foi fundamentada na decisão proferida pelo STF no julgamento conjunto das ADI 1.945 e 5.659, em 2021, oportunidade na qual a Corte Constitucional analisou a incidência do ICMS ou do ISS sobre tais operações, para, superando uma categorização metodológica antes respaldada, concluir que, sobre a operação de licenciamento de software, do tipo que for – padronizado, por encomenda, customizado ou customizável (customizado em pequena extensão) –, incidiria o ISS e não o ICMS.

 

O ponto fundamental reside, não na referida conclusão, mas na sua premissa condicionante: para a Corte Constitucional, todo e qualquer licenciamento de software ostentaria a natureza de prestação de serviços, produzindo os correlatos efeitos jurídicos.

 

Antes da edição de qualquer pronunciamento da RFB sobre os reflexos desse precedente na interpretação da legislação federal, o fato é que já existiam Soluções de Consulta, providas de efeito vinculante, validando respostas lastreadas na premissa de que softwares padronizados ou com customizações simples se aproximavam do conceito de mercadoria (as já mencionadas Solução de Consulta COSIT 123/14 e Solução de Consulta COSIT 269/19).

 

Por essa razão, mesmo após a decisão do STF, Soluções de Consulta vinculadas repetiam a orientação tradicional, afastando a praxe da RFB na interpretação da legislação federal da solução encontrada para o conflito de competências estabelecido entre Estados e Municípios. Nesse sentido, enquanto nas esferas estaduais e municipais as licenças de software passaram a receber homogeneamente o tratamento de prestação de serviço, na esfera federal esse tratamento dependia do tipo do software.

 

Naquela época, inclusive, instalou-se um debate interessante sobre a ratio decidendi estabelecida no acórdão do STF, cuja identificação implicaria diretamente a obrigação ou, a contrario sensu, a desobrigação de a esfera federal homogeneizar o tratamento fiscal para todo tipo de software, como se tudo prestação de serviço fosse.

 

Por um lado, se a ratio decidendi fosse, de fato, a identificação da natureza de toda licença de software como genuína prestação de serviço, a premissa fundamental seria epistemológica, motivo pelo qual não se poderia cogitar de, no campo federal, tratar certos softwares como serviço e outros como mercadoria.

 

Sob essa perspectiva, a partir do momento em que o STF cravou sua resposta sobre o conflito de competência entre Estados e Municípios, a RFB já não mais teria substrato sistêmico-jurídico para manter o entendimento até então mantido.

 

No entanto, por outro lado, se a ratio decidendi residisse, sim, no fato de que as licenças de uso de softwares constavam previstas na LC 116/03 como manifestação da função pacificadora da lei complementar, disciplinada pelo artigo 146, I, da Constituição Federal, aí a premissa fundamental seria formal, prescindindo da questão epistemológica e, por isso, indiferente ao tratamento federal do mesmo objeto.

 

Sob essa segunda perspectiva, o julgamento do STF ofereceu resposta para o conflito de competências visto entre Estados e Municípios, mas nada trouxe de novo para a interpretação da legislação federal.

 

O grande problema foi que a fundamentação do acórdão, apesar de extensa e rica em elementos argumentativos, acabou por falhar na objetividade e na clareza. Ao contrário, a análise dos votos individuais revela raciocínios por vezes erráticos, com fundamentos contraditórios sobrepostos, o que tornou extremamente árdua a tarefa de localizar as razões convergentes e divergentes, a fim de explicitar a ratio decidendi.

 

Por esse cenário, até o início desse ano, a verdade é que o acórdão, sozinho, não facilitou para os estudiosos do direito tributário entenderem se haveria, ou não, reflexo na tributação federal.

 

E aí veio a Solução de Consulta COSIT 36/23: refletiu. Esse reflexo é que estamos ilustrando como o raio desta metáfora, para avaliar qual a sua representação. Ela muda tudo, já causa estrondo, como um trovão, jogando todas as posições anteriores pelos ares? Ou é um relâmpago, cuja luz avisa o barulho por vir?

 

Com efeito, essa consulta tratou especificamente dos percentuais de presunção aplicáveis na apuração do IRPJ e da CSLL no regime do lucro presumido. Em relação a esse tema, de fato, a publicação do ato já produz os efeitos modificativos, mas eventual alteração de entendimento, quando desfavorável ao contribuinte, só produz efeitos sobre os fatos geradores ocorridos após a publicação da imprensa oficial da nova solução de consulta (artigo 26, IN RFB 2.058/21, c/c artigo 1º, I, ADI RFB 4/22). Isso inclusive foi esclarecido na própria consulta.

 

Nesse ponto, portanto, ela é uma verdadeira trovoada, aperfeiçoando o raio e mudando a aplicação normativa daqui por diante.

 

Mas a questão não se encerra aí. Ao afirmar categoricamente estar superado, na aplicação da legislação federal, o tratamento de certas licenças de software como mercadorias, tal entendimento acaba por ecoar em outras normas federais tributárias.

 

Afinal, a caracterização de uma licença de software como mercadoria ou serviço conduz a conclusões distintas sobre a tributação dos royalties pagos como contraprestação à contratação. É o caso da regra de incidência da Contribuição ao PIS e da COFINS nas importações.

 

A Solução de Consulta COSIT 407/17, último pronunciamento vinculante da RFB no tema, veicula o entendimento de que as referidas contribuições incidiriam na importação de softwares por encomenda, plenamente customizados, por se revestirem da natureza de prestação de serviço e, por outro lado, não incidiriam na importação de softwares padronizados ou customizáveis em pequena extensão, na medida em que não enquadráveis como serviço.

 

Com a mudança de entendimento consagrada na Solução de Consulta COSIT 36/23, o fundamento da Solução de Consulta COSIT 407/17 cai por terra e, uma vez considerada a licença de software como prestação de serviço, ela passaria a ser tributada com com as alíquotas de 1,65% e 7,6% previstas, respectivamente, para a Contribuição ao PIS e a COFINS incidentes nas importações.

 

Agora, nesse ponto, o recente ato da RFB está mais para um relampejo do que para uma trovoada.

 

Afinal, as Soluções de Consulta proferidas pela COSIT produzem efeitos vinculantes no âmbito da RFB (artigo 33, IN RFB 2.058/21) e, como já destacado, caso suas conclusões sejam infirmadas ou superadas por atos posteriores, essa mudança de entendimento só passa a produzir efeitos sobre os fatos geradores posteriores à publicação da nova orientação.

 

Assim, como por enquanto ainda não há qualquer ato da RFB confirmando a incidência da Contribuição ao PIS e da COFINS nas importações de software, vige a Solução de Consulta COSIT 407/17.

 

Mas o relampejo está aí já posto: o entendimento expresso na Solução de Consulta COSIT 36/23 revela uma tendência de alinhamento da Receita com o julgamento do STF, passando a tratar licenciamento de software, em geral, como prestação de serviço, o que significa que há uma possibilidade de superação, no futuro próximo, da Solução de Consulta COSIT 407/17. Lá vem a trovoada.

 

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